quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Há dois anos descobri Murakami


Corre o ano de 2007 e ‘Em Busca do Carneiro Selvagem’ acaba de ser lançado pela Casa das Letras, com uma distribuição em peso pelas livrarias nacionais, e um número de vendas muito elevado. Eu, treze anos, olho desinteressado para a capa na montra de uma livraria, leio a sinopse, e viro as costas ao livro. Um policial qualquer sem graça, em busca de um carneiro misterioso. Não é para mim. Risco da minha lista de autores a ler o nome «Haruki Murakami». Menos um para a fila de espera.

Um salto temporal, desta feita para o Outono de 2008. Já com os meus quinze feitos, comecei uma rotina mais regular de leitura. Participo num fórum da internet chamado Estante de Livros, onde se discute qual o livro ideal para se começar uma leitura conjunta. Esta ideia entusiasmava-me, ler um livro ao mesmo tempo que muitas outras pessoas, e ir discutindo a pouco e pouco os pormenores! Os dois livros que lideram a votação para o mais escolhido são «Meridiano de Sangue», de Cormac McCarthy, e «Sputnik, Meu Amor», do tal Murakami. Confirmo com agradável surpresa que o livro que saía com a Revista Sábado nessa quinta-feira seria este último. Compro-o numa papelaria a trezentos metros da minha casa, e trago-o comigo para casa. Dias depois, é anunciado o livro vencedor da votação no fórum: «Meridiano de Sangue». “É preciso ter azar”, penso. Pego no Sputnik, arrumo-o no fundo da minha estante. Passa despercebido, e não tenho vontade de o ler. Ainda se fosse com o intuito de uma leitura conjunta. Mas nestas circunstâncias, não.

Passam-se aproximadamente cinco meses. Salto temporal para o dia 16 de Fevereiro de 2009, uma segunda-feira de sol pálido. Acabara um livro na véspera, e vou à estante ver qual me apetece ler agora. De entre as lombadas de todos, salta-me a vista para um escondido meio ao fundo. Qual é aquele? Lembro-me ao fim de uns segundos de qual se tratava. Abro na primeira página e leio:

«Na Primavera dos seus vinte e dois anos, Sumire apaixonou-se pela primeira vez na vida.»

Dei uma hipótese, pouco entusiasmado. Peguei no livro, coloquei-o na mala, segui para a escola. Mais uma leitura para me distrair ao longo de mais uma semana. Era pequeno e devia acabar-se rápido. As expectativas estavam baixas, senão muito baixas, e não esperava nada de mais.

Trinta e seis horas depois, concluía a leitura da última página. Os meus olhos, meio esbulhados; as minhas mãos, a tremer ligeiramente; a minha mente, muito longe dali. Acabara de se criar um laço que até hoje não se quebrou, antes de se tem vindo a fortificar a cada leitura que faço deste senhor japonês. Haruki Murakami ligou uma lanterna na divisão semi-escura em que vivia (tudo isto literariamente falando), e mostrou-me uma nova luz possível sobre o que é uma boa leitura e boa literatura. Levou-me a trilhar caminhos pelos quais nunca passeara. Todo o imaginário, todas as motivações das personagens, todo aquele universo…

Um mês depois estava a ler «A Sul da Fronteira, a Oeste do Sol». Seguiu-se a «Crónica do Pássaro de Corda». «Auto-Retrato do Escritor enquanto corredor de Fundo». «Hear the Wind Sing» e «Pinball, 1973» mandados vir, respectivamente, dos EUA e do Japão. «Em Busca do Carneiro Selvagem». «After Dark – Os Passageiros da Noite». «Underground – O Atentado de Tóquio e a Mentalidade Japonesa». E agora, há pouco tempo, «Dança, Dança, Dança». Ainda me faltam uns 4 em português, mais uns 2 ou 3 existentes em inglês. E 1Q84. E o que estiver para vir.

«No Inverno dos seus quinze anos, Tiago apaixonou-se pela literatura de um autor pela primeira vez na vida.» Esse autor foi, e é, o japonês Haruki Murakami. Faz hoje dois anos que o descobri, que li as suas primeiras linhas. Abriu-me os olhos, expandiu-me os horizontes, e continua a marcar o meu dia-a-dia. Obrigado, senhor Murakami.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Crítica - Dança, Dança, Dança


Neste preciso instante, sinto uma vontade tremenda de escrever uma longa análise acerca deste livro; e, ao mesmo tempo, faltam-me as palavras para esta curta critica. Por onde começar? Pelo re-afirmar da frase já muito batida por mim - Haruki Murakami é o meu autor preferido. Não tenho dúvidas. Depois do que já li dele, não tenho qualquer dúvida de que esta seja a minha verdade actual. Ler um livro de Murakami é uma experiência rara, de absorção e magia, de distorção da realidade, de musicalidade presente no quotidiano, tudo isto e mais.

«Dança, Dança, Dança» é a sequela de «Em Busca do Carneiro Selvagem», que por sua vez concluiu o ciclo da Trilogia do Rato. Regressamos ao narrador sem nome, à sua vida, aos seus pensamentos; e é um regresso tão acolhedor que nos sentimos absolutamente em casa. Isto apesar do princípio desta obra não ser propriamente dos mais fáceis - Murakami, na minha opinião, tem nos diálogos entre as personagens um dos seus grandes trunfos; e nos primeiros três capítulos existe uma quase inexistência deles. Só a partir do quarto ou quinto é que o solo da obra passou a ser permeável, e me comecei a afundar.

Já não parto na expectativa de gostar ou não. É quase um dogma que tenho enquanto leitor. A probabilidade de não vir a gostar de um livro dele vai diminuindo à medida que o leio mais. Em «Dança, Dança, Dança», temos um regresso aos cenários, tão modificados; e conhecemos tantas personagens novas, e tão cativantes. O próprio narrador parece estar mais interessante do que nunca. O universo aprimorou-se neste quarto livro da saga do Rato.

Senti nesta obra um... «peso japonês»... que não tinha sentido tão intensamente nas outras. Isto apesar de, a certa altura, sairmos do cenário do Japão - facto raro em livros do autor. Mas há qualquer coisa nas relações das personagens, nos actos de algumas delas, mais oriental do que o habitual. Uma simples impressão minha.

O livro é viciante. Custa deixá-lo de lado, apetece lê-lo pela noite dentro, mantermo-nos por dentro da história. E agora vem a questão do enredo - muito pouco linear, ao contrário do que encontramos no «Em Busca do Carneiro Selvagem». É que em «Dança, Dança, Dança», não temos uma intriga bem definida, vamos vagueando, vamos dançando, dançando, dançando. Daí que não goste de algumas partes da sinopse, e mesmo de críticas de jornais mundias quando se referem a Murakami, utilizando temas como «thriller», «policial», «investigação», ou «o narrador e os seus amigos acabam por se envolver num caso de homicídio» (o exemplo deste livro). Nada mais errado. Isto é um distorcer completo da imagem que este livro deixa. Não se trata de mistério, nada disso. Se não tivesse sido por acaso que descobri o autor, nunca teria comprado um livro seu pelas sinopses que normalmente são apresentadas. É um erro associar estes temas às obras dele...

As personagens vão deixar saudades. Existem momentos de beleza incrível, majestosa, como se víssemos uma paisagem arrebatadora ao vivo. As emoções das personagens, as relações tão complexas, o surreal presente a cada momento, o realismo mágico que tanto me fascina... «Dança, Dança, Dança» é um dos melhores livros que li de Haruki Murakami. No fim do livro, resta um sentimento de vazio, de continuidade, de... pegarmos noutro livro, iniciarmos uma nova leitura, ainda com a cabeça totalmente centrada na anterior... e irmos dançando à medida que a vida passa. Imensamente tocante e poderoso.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

[Crónicas da Tradutora] - A angústia da tradutora diante dos caracteres chineses



Peter Handke escreveu sobre a angústia do guarda-redes antes do «penalty»; hoje em dia, um bom comentador logo corrigiria para «pontapé da marca de grande penalidade», mas lá se perdia a graça toda. Os escritores temem a página em branco. Uma tradutora como eu conhece sentimentos de angústia redobrados diante dos caracteres chineses, que ainda não domina (talvez quando a editora se reformar e lhe der tréguas, quem sabe?, antes da bengala e dos outros males próprios da idade), e das mil e seiscentas páginas repletas de palavras que a esperam, assim que lhe chegue às mãos a tradução final em língua inglesa.

Tal como Murakami não se cansa de afirmar que «ao escrever, desço ao mais fundo da minha mente», também eu faço os possíveis por aprofundar o conhecimento da(s) língua(s) e da linguagem, para melhor traduzir o que vai na cabeça e na alma do japonês. Confio no saber e na perícia de Jay Rubin e de Philip Gabriel, encarregados de traduzir para a língua inglesa o novo romance que anda nas bocas do mundo: 1Q84. Tal como Rubin, também eu me habituei a escrever para o Japão, deixando que a fiel Yuki transmita a Haruki Murakami as dúvidas que me assaltam, bem como uma ou outra questão porventura mais frívola (a assistente do escritor tem amigos na Europa e, por vezes, trocamos duas ou três ideias sobre assuntos que nada têm que ver com a literatura).

Neste romance, a tal obra de peso em que Murakami deposita grandes esperanças, Jay Rubin, encarregado da tradução dos Livros 1 e 2 para inglês (Gabriel traduziu o terceiro livro), percebeu a páginas tantas que muitas passagens podiam ser traduzidas ou na primeira ou na terceira pessoa, e pediu, como sempre, indicações ao autor. As respostas de Murakami são muitas vezes desconcertantes. O japonês confia nos seus tradutores; pede-lhes, acima de tudo, que façam o melhor que sabem, a fim de os seus livros funcionarem bem na língua em que estão a ser traduzidos, que é como quem diz, junto dos falantes de uma determinada língua.

Hoje é dia 1 de Fevereiro de 2011. Na vizinha Espanha deve haver muitos leitores, de todas as idades, imagino eu, sem dormir. Começa a circular a edição espanhola de 1Q84, traduzida por Gabriel Álvarez Martínez para a Tusquets, um grosso volume em tons de preto e verde, com o título sonante bem visível. No Japão, os 500 mil exemplares desapareceram das estantes e dos escaparates da noite para o dia, obrigando a uma rápida reedição, e ao fim de uma semana já tinham sido vendidos mais de dois milhões de exemplares. Na Alemanha, no Outono passado, a tiragem inicial de 40 mil cópias não foi suficiente para satisfazer a procura nem para alimentar os devoradores dos livros escritos por Murakami. Em Inglaterra e nos Estados Unidos, o livro sairá só em Outubro, mas, em compensação, os que lêem na língua de Shakespeare, Roth, DeLillo e McEwan (que ganhou este ano o Prémio Jerusalém, sucedendo ao nosso japonês preferido) vão ser os primeiros a conhecer o fim da ambiciosa história que demorou três anos a ser escrita. E nós, por cá, ainda é cedo para saber, mas só depois dessa data, por certo. Mantenham-se atentos a este blogue…

Confesso que já tenho o meu livro em castelhano encomendado, por mensageiro escolhido a dedo. Logo na primeira página, surge em toda a sua pujança a personagem curiosíssima de Aomame, a tal assassina que abandona o táxi, em plena auto-estrada, no meio de um engarrafamento monumental, e se mete pelas profundezas dos subterrâneos para chegar a tempo a uma reunião de vida ou de morte. O romance tem um começo fantástico, ao som da Sinfonietta de Janáček, dentro daquele táxi perfeitamente surreal, conduzido por um motorista que não lembra ao diabo. Contou Murakami aos dois jornalistas que o entrevistaram recentemente que a história começou a ganhar forma no dia em que ele viajava pelas ruas apinhadas de Tóquio e se viu preso no meio do tráfico intenso. «Olhei pela janela e pensei como me sentiria se abandonasse o carro ali mesmo e descesse ao subsolo da cidade.» Uma ideia daquelas que os escritores têm e apontam religiosamente nos seus caderninhos.

Ando a ler este romance na versão alemã. Em fundo, «Cravo Bem Temperado», música para os meus ouvidos. Os prelúdios e fugas de Bach em todos os tons ajudam-me na descoberta das várias línguas. Vai ser bom reencontrar a proximidade da língua castelhana, sempre com os caracteres chineses por perto….


Maria João Lourenço

Maria João Lourenço, tradutora das obras de Haruki Murakami para o português, iniciou uma parceria com o blog MURAKAMI PT, e assina a cada mês uma crónica por si escrita, que aborda um dos múltiplos temas que o autor japonês abrange.