segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Uma leitura de 1Q84...


Opinião do Tiago do blog MURAKAMI PT. Fotografia do Tiago.

O primeiro capítulo desta obra é condição suficiente para o vínculo Murakami-Eu ser criado. E isto é de louvar. Primeiro, porque a minha experiência relativa aos livros deste autor japonês é a de começos pouco entusiasmantes, exceptuando um ou dois casos. O primeiro volume de 1Q84 tem início no interior de um táxi preso num congestionamento de trânsito. Toca na rádio a Sinfonietta, obra clássica de Leos Janacek. A mulher está com pressa, e não tem vontade de esperar horas naquela fila. E estão lançados os dados para aquela que é, provavelmente, a cena inicial mais épica de toda a carreira de Haruki Murakami enquanto romancista. O mérito de um excelente primeiro capítulo: no mínimo, já tem este prémio. 

 A obra intercala capítulos narrados pelas duas personagens principais: Aomame, e Tengo. Tenho uma opinião muito clara... na primeira fase do livro, os capítulos dela são muito mais fortes que o dele. O que não significa que as coisas não mudem de figura mais à frente. Sentia até um certo anti-clímax quando chegava a um capítulo de Tengo: "pronto, meia-hora sem Aomame". 

 Os cenários que Murakami cria são fabulosos porque nos levam para lá. A magia respira-se com facilidade. Destaco a cena da estufa das borboletas. Os diálogos entre as personagens são óptimos, fluem com uma consistência assustadora. E, de tão naturais são, que conseguem mexer com as nossas emoções, ao ponto de me fazerem rir tantas vezes. Esta é uma característica que me interessa muito em Murakami. O ambiente é de realismo fantástico, respira-se magia, mas magia sóbria: e, no entanto, consegue fazer-me rir tantas vezes. Destaco como exemplo o ensaio para a conferência de imprensa! 

 Depois desce às zonas mais profundas. A violência doméstica, por exemplo. As seitas religiosas e o mistério que criam à sua volta. Aventura-se pelos caminhos do que é realidade e do que é imaginação. É difícil fazer ver a minha opinião: com Murakami é particularmente difícil. A tradução é envolvente e torna a obra de leitura extremamente agradável: o trabalho conjunto de Maria João Lourenço e de Maria João da Rocha Afonso resulta numa harmonia digna de nota - uma harmonia murakamiana que já é tão típica para os leitores portugueses. 

 No entanto, e apesar de todos estes pontos positivos, e apesar de uma parte de mim ter ficado a morar naquele universo enquanto aguardo pelo lançamento do volume 2 para Março, e apesar daquele mundo ter tanta coisa interessante por contar, não foi uma experiência de imersão tão forte como já tive em alguns outros livros dele. Talvez por não se cravar de forma tão funda no universo das não-explicações. Talvez por abordar temáticas demasiado reais como a questão das seitas e da violência doméstica. Talvez pela insuficiente exploração do lado solitário das personagens... não sei, mas Aomame e Tengo não me conquistaram totalmente. Fico à espera do próximo com o entusiasmo em níveis altos, mas... mas... 

 É difícil falar de 1Q84 mas é fácil ler 1Q84. Somos levados a passear por uma Tóquio alternativa, viva, não tão vibrante como a de After Dark, mas ainda assim entusiasmante. Temos as cenas de ternura elevadas ao expoente máximo, como a leitura de Tchékov em voz alta. Temos as cenas de fazer crescer água na boca, como o jantar no restaurante de luxo. Temos personagens de todos os géneros e feitios, uma obra verdadeiramente diversificada neste aspecto! E uma linguagem que nos remete constantemente para imagens ilustrativas dos pensamentos das personagens... ficamos perturbados pelo comportamento de algumas delas. O mistério é outra das componentes, mas não gosto de associar essa palavra à obra do autor, parece-me sempre demasiado redutor. Duas personagens que passam para lá da linha do razoável e vão parar a não sabem onde, sem saírem do sítio. Já não estamos em 1984.


terça-feira, 15 de novembro de 2011

«O ADN de um solitário» - Artigo do jornal i


Artigo de dia 12 de Novembro de 2011 no jornal i, assinado por Diana Garrido. Seguem-se as duas folhas em miniatura, carregue-se nos links por baixo de cada imagem para se ver em resolução grande. Publicadas no blog com a devida autorização do jornal.




segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Murakami em dose tripla no P3!


O toque de Murakami
por Maria João Lourenço, publicado no P3 a 7 de Novembro de 2011.

Aos jovens, Haruki Murakami toca-lhes na corda sensível, primeiro que tudo. O resto vem depois. É como interpreto, numa primeira leitura, a ternura com que pegam nos livros, sopesando um calhamaço como "Crónica do Pássaro de Corda" ou revirando entre os dedos o pequeno volume de "Sputnik, Meu Amor". Vejo-os todos os anos, na Feira do Livro, aproveitando a oportunidade (leve quatro, pague três...), e sei do que falo porque aproveito muitas vezes para conversar com eles. Depois, acontece que os vejo por vezes enquanto lêem, ensimesmados, indiferentes aos olhares. Sigo ainda o que escrevem nos blogues. 

Murakami toca-lhes fundo. De forma inteligente, sem paternalismo e com humor. Quando fala da ternura e do sexo. Da vida em família e da camaradagem (ou da ausência dela) na escola. Da cumplicidade e da estranheza das ligações que se vão estabelecendo... ah, só o tema das chamadas telefónicas dava para um artigo. Da solidão. Da violência. Peguem em Kafka, o de Murakami, claro, Tamura de seu nome. Juntem-lhe Johnnie Walker (atenção, não beber o sangue). Sabiam que há uma página do MySpace criada por João Tamura? Onde terá o jovem ido buscar o apelido? O mundo é um sítio violento, Murakami sabe disso, mas nos seus romances interioriza a violência e trata esse tema com uma estranha e desarmante candura: quem conhece o seu discurso proferido aquando da entrega do Prémio Jerusalém ("O muro e o ovo"), percebe. Por outro lado, é bom não esquecer que Murakami se considera, no fundo, um optimista. Como ele diz, as suas personagens "acabam por encontrar uma solução para superar os seus problemas, mas têm de sofrer pelo caminho". 

Os leitores vivem com as personagens, daí a importância dos rituais que percorrem o nosso quotidiano. Entre gestos simples, como lavar as mãos e pentear os cabelos, ou descascar uma maçã, preparar um jantar ao som de Puccini enquanto uma pessoa espera que o paisagem em volta se revele porventura menos deformada. Acredito que o Tiago, do blogue Murakami PT, feche muitas vezes os olhos, olhe para o tecto e e deixe escapar um suspiro profundo pleno de sugestões e possibilidades, como acontece com o Tengo, na página 119 do "1Q84". "Sinto que ele consegue sintonizar de forma sublime o que corre dentro de nós", confessa o Tiago. Tengo, Aomame, Kafka, Hajime, Izumi, Toru, Kumiko e tantas outras, são personagens que têm nome japonês mas falam ao coração dos leitores jovens de todo o mundo. E, depois, este japonês apela à leitura. Conheço quem tenha saído de lá, de dentro dos seus romances, pronto para devorar Dickens e Dostoiévski, Tchéhov, Hammett, Shakespeare, Carver, só para citar meia dúzia. Sei de muito boa gente que começou a escrever por causa dele. 

Murakami abre o seu coração aos jovens e fala-lhes ao ouvido. Não admira que as raparigas espanholas que o receberam na Catalunha, quando ali foi receber um prémio, o quisessem beijar...



Haruki Murakami: poços, gatos, jazz e mulheres misteriosas
por Simão Miranda, publicado no P3 a 7 de Novembro de 2011.

Poços, gatos, jazz e mulheres misteriosas. Dito assim pode soar um pouco redutor, mas a verdade é que a prosa do autor japonês Haruki Murakami ronda muito em torno destes temas ambíguos. 

Muitas vezes literal mas, sobretudo metaforicamente, Murakami consegue chegar até nós através de longas narrativas sobre solidão, alienação e até crítica social sobre a geração actual do Japão, tão cheia de si mesma, de consumismo e de trabalho inconsequente. 

Longas narrativas como as longas maratonas que o próprio Murakami costuma fazer na sua vida real como forma de ter força para “abrir a porta”, a porta que lhe permite chegar até à Outra Sala onde tudo acontece. Claro que precisa sempre de voltar, e é aí que entra a vida rotineira e regrada que o próprio não trocaria por nada. 

À semelhança de um Salinger ou de um Kafka, Murakami vive uma vida controlada e nada boémia: acorda antes das cinco da manhã, trabalha durante cinco horas, corre de tarde, ouve música depois do jantar e deita-se às nove da noite.
 

Prefere estar só, a fazer algo que o complete, do que a falar com alguém e certamente esta faceta da sua vida reflecte-se nas suas personagens: solitárias, pensativas e por vezes apáticas, engolidas pela monumentalidade da grande máquina que é a sociedade em que vivem, daí o isolamento. Procuram o poço onde estão inatingíveis e seguras, desistem de procurar pelo gato que nunca irá reaparecer e deixam-se embrenhar na escuridão total até passarem para o outro lado. 

É compreensível o enorme sucesso de Murakami – especialmente entre os jovens – pois podem relacionar-se facilmente com as personagens retratadas. Talvez sem grandes esperanças, o que lhes resta é descerem ao metafórico poço e esperar que possam encontrar a porta para o outro lado.
 

Num registo bastante kafkiano (tudo é completamente "normal" no universo de Murakami), com um humor requintado e vastas referências musicais e literárias (um piscar de olho ao seu passado como dono de um clube de jazz), a prosa de Murakami é única no mundo, possui um género próprio (Realismo Mágico) e atingiu já o estatuto de fenómeno de culto.
 

No dia em que é publicado em Portugal o primeiro volume do seu novo romance "1Q84", a pergunta que se coloca é simples e paradoxalmente complexa: vamos novamente descer ao poço?



Haruki Murakami, o intérprete de uma geração no fundo do poço
por Andreia Azevedo Soares, publicado no P3 a 7 de Novembro de 2011

O mais recente romance de Haruki Murakami chega às livrarias portuguesas esta segunda-feira, dia 7 de Novembro. Chama-se “1Q84” e vai ser publicado pela Casa das Letras em três volumes. Eterno candidato ao Nobel da Literatura, Murakami (Quioto, 1949) conta com uma legião de fãs de diferentes países e idades. Os jovens, contudo, constituem um grupo especial nessa comunidade global de leitores.

Desde o sucesso editorial da saga Harry Potter que não se vê no mercado editorial tamanha expectativa para o lançamento de um livro. No fim de Outubro, livrarias norte-americanas decidiram ficar abertas até à meia-noite para conseguir atender os clientes ansiosos por ler “1Q84”. Mas quais são exactamente os elementos narrativos que levam milhões de jovens a devorar os livros densos (e, muitas vezes, extensos) do escritor japonês?

Murakami é considerado um guru para muitos jovens japoneses. Os romances do escritor japonês são lidos com paixão tanto pela rapariga de Santiago de Compostela como pelo rapaz de Nova Iorque. Mesmo vivendo realidades sócio-culturais distintas, Murakami “fala-lhes ao ouvido” e “toca-lhes na corda sensível”, explica a tradutora Maria João Lourenço, numa crónica enviada ao P3.

Maria João salienta o facto de Murakami explorar nas narrativas temas que, sendo inerentes à condição humana, parecem vibrar com uma urgência própria no universo juvenil. Estamos a falar da solidão e do sexo. De vidas anódinas e experiências limite. Da ternura e da violência latente. Da alienação social e da memória histórica que persiste num limbo. Temas com que se debate hoje uma geração que resiste a classificações fáceis. Não é por acaso que a obra do autor nipónico é apontada como inspiração para filmes como “Lost in Translation”, de Sofia Coppola, e “Babel”, de Alejandro González Iñárritu.

Murakami tem a capacidade de mesclar a banalidade do quotidiano com episódios surreais. Nos romances do autor, encontramos uma personagem a cozer esparguete mas também vemos enguias a cair do céu. Andreia Filipa Silva, de 22 anos, gosta dessa “comunhão” entre “a realidade e o fantástico”. “[Murakami] é capaz de dar a conhecer a realidade japonesa ao mesmo tempo que escreve com um misticismo e simbologia, que deixa o leitor viajar pelo mundo do subconsciente”, explica Andreia, que estuda Cinema, Vídeo e Comunicação Multimédia.

Opinião semelhante tem João Craveiro, de 27 anos. Este estudante de doutoramento conta que Murakami tem o condão de fazer “fantasia sem criar um mundo fantástico irreal à parte”.

“Os mundos fantásticos dele guardam muito em comum com o mundo real, e isso faz com que se consiga desfrutar a narrativa sem ser assoberbado com nomes de galáxias, espécies, e coisas do género (memorizar dois ou três nomes de cidades japonesas ainda é tolerável)”, nota João Craveiro num e-mail enviado ao P3.
Outro aspecto importante é o modo como Murakami incorpora referências musicais nos textos. Antes de se tornar autor de culto (e, já agora, corredor de maratonas), Murakami era dono de um clube de jazz. Simão Miranda, estudante de 22 anos, confessa que o que o “atraiu inicialmente foram as referências culturais”, sobretudo ao jazz.

Após a leitura de “After Dark” e “Crónica de um Pássaro de Corda”, Simão conseguiu ver que os temas ali abordados “são bastante complexos”. Há, por exemplo, a questão da alienação e da ansiedade à qual, como recorda numa crónica enviada a P3, uma geração inteira é sensível. Uma geração que desceu ao poço e “espera encontrar a porta para o outro lado”.


quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Uma leitura de Norwegian Wood...

Opinião do Tiago da equipa do blog MURAKAMI PT.

Parti para este livro com uma imagem de tal forma estereotipada que não fazia a mínima ideia do que ia encontrar nele. Frequentemente é dito que «Norwegian Wood» é o mais romântico dos livros de Haruki Murakami: a aproximar-se dos romances escritos para jovens com as hormonas aos saltos. O próprio Murakami afirmou que «Norwegian Wood» foi uma experiência isolada, a não tenciona voltar ao mesmo género. Por outro lado, a obra é o maior dos fenómenos de venda no Japão. E, um pouco por todo o mundo, são imensos os leitores que dizem que «Norwegian Wood» é o seu preferido. Com um começo algo estranho e anticlimático, como penso ser comum neste autor, debrucei-me sobre um mundo que pensava desconhecer.

Enganei-me. O Haruki Murakami pode dizer o que quiser. Esta não é uma tentativa isolada, e sim uma tentativa integrada entre os seus restantes livros. Não temos em «Norwegian Wood» uma mudança abrupta de estilo, nem de perto nem de longe. Temos a contínua voz deste contador de histórias. A começar em tudo, a acabar em tudo. Na personagem principal, igual a tantas outras de Murakami (talvez um pouco mais... jovem que o normal). Nas personagens secundárias que o rodeiam, mulheres com histórias tão diversas. No elementos western sempre presentes, músicas, livros, coca-colas. Nos tremendamente bem caracterizados momentos de solidão, e os de paz, e os de vida quotidiana que vai correndo sem que nada ocorra. Murakami retrata a vida de uma prespectiva melancólica.

Foi nesta obra que li um dos mais poderosos capítulos de Haruki Murakami, e isto depois de uns dez livros dele lidos. O capítulo 6 de «Norwegian Wood», este titânico capítulo 6, com 90 páginas (a contrastar com os restantes, que andam à volta das 20, 30 páginas). Um relato de um mundo completamente à parte, mas bem real. Neste preciso instante, há pessoas a viverem esta paz nas suas vidas, separadas de tudo o que nos parece essencial. A sensação com que fiquei quando acabei este capítulo ganhou à que me ocupou quando terminei o livro. Quando estas 90 páginas chegam ao seu término, ficamos com a sensação que está tudo dito, e chega até a nascer em nós um palpite de como aquilo tudo vai acabar. É assim mesmo em Murakami.

Nota negativa... Haruki Murakami excedeu-se com o erotismo desta vez. Principalmente na segunda metade da história. É de se revirar os olhos e suspirar de aborrecimento. Claro que, em tais doses, é propositada esta sensação que passa para o leitor. A personagem principal confronta-se com este mesmo problema: o excesso de sexo. O assunto é tratado de forma contínua, algo que está presente sempre com uma intensidade relativa. Acho que percebi onde o autor quis chegar, mas foi demais. A certa altura as cenas secavam por completo.

Notas positivas... quase tudo o resto! Não há muito mais que tenha a apontar como menos bom. A tradução de Alberto Gomes tem alguns elementos que me irritaram um pouco, como os «De verdade?» em vez de «A sério?», e o uso da 2ª pessoa do plural em algumas conversas entre amigos. Mas no geral o espírito de Haruki Murakami foi captado. Este autor tem um força incrível, é capaz de nos cravar dentro das histórias, e deixar-nos lá a marinar durante muito tempo. Não é o livro que entra na nossa vida, somos nós que entramos no livro. Isto é assustador, porque uma parte de nós fica lá, e continua a viver lá mesmo depois de termos acabado. Estou a falar usando o «nós», mas na verdade quero usar o «eu». Nem todos terão a mesma experiência. «Norwegian Wood» foi uma experiência de leitura triste, melancólica, Murakami ao seu nível - excelente.

domingo, 30 de outubro de 2011

Murakami - Um 'best-seller' obcecado



O estereótipo divide os escritores em dois grupos: os boémios, na linha de Hemingway e F. Scott Fitz-gerald; e os solitários, casos de J.D. Salinger ou Cormac McCarthy. Não vivendo em reclusão total como o autor de À Espera no Centeio, Haruki Murakami, 62 anos, encaixa-se melhor na segunda categoria, como assume em Auto-Retrato do Escritor Enquanto Corredor de Fundo: "Não considero que passar uma ou duas horas por dia a correr, sem trocar palavra com ninguém, e outras quatro ou cinco horas sozinho à secretária, seja aborrecido. Preferia mil vezes ler livros ou ouvir música do que estar na companhia de alguém." Mas os colaboradores garantem que o isolamento não o torna intratável. 

Maria João Lourenço, a tradutora de Murakami em Portugal, até lhe gaba o carácter comunicativo: "Lembro-me bem da primeira carta que me escreveu, muito simpática. Agora, contacto-o por e-mail. Nesta última tradução, respondeu a uma dúvida minha dizendo para fazermos como acharmos que fica melhor na nossa língua. É muito pouco burocrático." 

Fiel a uma rotina espartana, o romancista acorda antes das cinco da manhã, trabalha cinco horas, corre ou nada à tarde, lê e ouve música depois do jantar para relaxar, deita-se às dez da noite. "É o padrão que tenho seguido até hoje." E foi graças a esse padrão militar que conseguiu escrever uma trilogia de 1200 páginas em três anos: 1Q84, o best-seller que antes de o ser já o era. Nunca nenhum livro de Murakami gerou tanta expectativa. Num mês, 1Q84 vendeu um milhão de exemplares no Japão. Em França, foram publicadas 70 mil cópias e em menos de uma semana estava nas lojas uma nova edição. 

Terça-feira, o lançamento em Inglaterra obrigou a uma actividade anormal no mercado. "A última vez que fizemos isto foi com o Harry Potter", garantiu um livreiro ao site da BBC sobre o horário alargado até à meia-noite. Portugal terá de esperar pelo dia 7 de Novembro (de terça-feira a oito dias) para ler o primeiro volume de 1Q84

Excepção feita a leitores especiais. "É uma obra muito bem articulada, que levanta questões importantes. Um romance intrigante, com muitas linhas narrativas que se cruzam, talvez o mais actual dele", adianta Maria João Lourenço, que neste caso dividiu a tradução com Maria João da Rocha Afonso. 

Passado em Tóquio, 1Q84 (em japonês, nove pronuncia-se Q, remetendo-nos para 1984, de George Orwell) é mais uma aventura ao estilo de Murakami, com surrealismo q.b. e muitas interrogações. Tantas que a própria editora chegou a duvidar se a falta de esclarecimentos poderia ser interpretada como "preguiça". Segundo o The Guardian, o escritor respondeu com ironia: "Para ser bem-sucedido a escrever uma história, o autor fá-lo de uma maneira tão interessante que leva o leitor até ao último ponto final, o que poderá levar a que o classifiquem como preguiçoso." 

Preguiça é um defeito difícil de colar a um homem que corre todos os dias, que completou dezenas de maratonas, que participou em várias provas de triatlo, que fez uma ultramaratona de 100 km - esteve 11h42 a correr. 

No entanto, a vida de Murakami nem sempre foi tão regrada e saudável. Antes de acabar o curso de Teatro, abriu um clube de jazz em Tóquio: "Trabalhava de manhã até às tantas da noite, antes de cair para o lado de cansaço." E tudo piorou aos 27 anos. Dividiu a gestão do bar com o primeiro e o segundo romances, Hear the Wind Sing e Pinball, 1973 (nunca editados em Portugal). O escritor só entrava em acção de madrugada, depois de o empresário fechar as contas e as portas do clube. Ao terceiro livro, trespassou o bar: "Gostaria de ter liberdade para escrever durante dois anos", disse a Yoko, a mulher com quem está casado desde os 23 anos. "Se a coisa der para o torto, podemos abrir outro barzinho algures." 

Busca do Carneiro Selvagem foi um sucesso e o agora escritor profissional mudou os hábitos: deitar cedo e cedo erguer, dá saúde e faz crescer o número de livros vendidos. Em 1987, publicou Norwegian Wood, que vendeu 10 milhões de cópias e apresentou ao Japão a sua nova estrela literária. Crónica do Pássaro de Corda, Kafka à Beira-Mar e Sputnik, Meu Amor reforçaram o estatuto e levaram-no até às 42 línguas em que Murakami já foi traduzido até hoje. 

Crónico candidato ao Nobel, o japonês é uma receita de sucesso em todo o mundo. Só nos EUA já vendeu mais de 2,5 milhões de exemplares. "Não faço ideia de quanto ganho por ano. É lamentável, mas o meu contabilista e a minha mulher é que tratam disso", explicou ao The Guardian. Em Portugal, Murakami vendeu mais de 160 mil exemplares. Kafka à Beira-Mar, com 13 edições e 40 mil exemplares, é o título mais procurado. E não lhe faltam seguidores portugueses, existindo até um blogue dedicado ao escritor (murakami-pt.blogspot.com) com 16 mil visitas anuais. 

Além de romancista, Murakami também é tradutor. Passou para japonês livros de F. Scott Fitzgerald, Truman Capote e toda a obra de Raymond Carver, seu amigo e mentor. Não tem filhos e vive entre o Japão, os Estados Unidos e o Havai. Esteja onde estiver, as corridas são sagradas: "Continuo a fazer exercício para melhorar a minha condição física, com o firme propósito de continuar a escrever livros." Quem disse que correr era um passatempo?


terça-feira, 25 de outubro de 2011

Entrevista ao The Guardian [Parte 2/2]



Segunda metade da entrevista publicada no THE GUARDIAN, que podem ler neste link. A tradução desta segunda metade do artigo foi redigida por André Pereira, um seguidor do blog que exerce a actividade de tradutor, e que se disponibilizou a traduzir esta segunda parte.


A sua esposa, Yoko Takahashi, é a sua primeira leitora. O romance que nasceu durante um jogo de basebol chama-se Hear The Wind Sing (sem edição portuguesa) e foi galardoado com um novo prémio para escritores no Japão. Durante uns tempos, Murakami continuou a gerir o seu bar enquanto escrevia e isso era essencial para o seu progresso, dizia: "Tinha o meu clube de Jazz e tinha dinheiro suficiente, portanto não tinha de escrever para me sustentar e isso é muito importante." Quando o livro Norwegian Wood vendeu mais de três milhões de cópias no Japão, Murakami sentiu que já não havia necessidade de continuar no bar, se bem que por vezes imagine uma vida paralela onde se vê ainda naquele contexto. Acredita que não seria menos feliz.

"Se acredito em vidas alternativas? Hum... Sim. Mesmo assim, acho muito estranho. Por vezes interrogo-me por que razão sou escritor. Não existe uma razão certa para que me tenha tornado um. Algo aconteceu e, pronto, tornei-me escritor. E agora sou um bem-sucedido. Quando viajo para os EUA ou para a Europa, as pessoas conhecem-me e é muito estranho. Há alguns anos fui a Barcelona e dei uma sessão de autógrafos. Sabe, vieram 1000 pessoas. As raparigas deram-me beijos. Fiquei surpreso. O que me aconteceu?"

Ele escreve intuitivamente sem quaisquer planos. A inspiração para o seu último livro veio quando estava no meio do trânsito em Tóquio. O que teria acontecido caso tivesse evitado o engarrafamento e seguido por um desvio? Iria a sua vida mudar? "É o ponto inicial. Eu tenho um pressentimento que irá ser um bom livro. Iria ser bastante ambicioso. Era tudo o que sabia. Escrevi o romance Kafka à Beira-Mar, talvez há cinco ou seis anos, e esperei pela chegada do novo livro; até que chegou. Chegou. Soube que iria ser um enorme projecto. Era um pressentimento."

Um livro como o 1Q84 pode, em simultâneo, assumir características elípticas graças ao brilhantismo de Murakami, mas também deixar o leitor algo insatisfeito. A artificialidade presente no livro pode ser desculpada pelo autor como se fosse um comentário à própria artificialidade e, por vezes, o tom vago pode ser algo negativo. "Desde aquela vez que viu duas luas no céu e uma crisálida a materializar-se na cama do seu pai no sanatório, nada surpreendia Tengo por aí além."

Tal como acontecia nos seus livros mais antigos, algumas das cenas mais ternas são superficiais ao enredo principal. Em Norwegian Wood, o livro que Murakami escreveu da forma mais convencional possível a fim de ser um sucesso comercial, focava-se no pai moribundo da personagem principal e da sua namorada. Já em 1Q84, são as cenas entre Tengo, o parceiro romântico de Aomame, e o seu pai moribundo que temos mais dificuldades em apreciar. A maioria das personagens de Murakami tiveram infâncias infelizes e não é uma coincidência, admite. Não aconteceu nada de drástico durante a sua infância. Ainda assim, diz, "senti-me um pouco maltratado. Talvez se devesse ao facto de os meus pais esperarem que o filho fosse de uma maneira, mas acabando por ser de outra." Ri-se. "Esperavam que tivesse boas notas na escola, mas não tinha. Não gostava de estudar durante muito tempo. Apenas queria fazer o que me apetecia. Sou muito consistente. Esperavam que fosse para uma boa escola e arranjasse um emprego na Mitsubishi ou algo do género, mas também não o fiz. Queria ser independente. Então abri um clube de jazz e casei enquanto ainda andava na universidade. Ficaram um pouco desapontados com isso."

E de que forma é que o demonstraram?

"Apenas estavam desiludidos comigo. É duro para uma criança lidar com essa desilusão. Eles são boas pessoas, mas mesmo assim fiquei magoado. Ainda me recordo dessa sensação. Queria ser um bom filho para os meus pais, mas não o consegui. Já eu não tenho filhos. Por vezes interrogo-me sobre o que aconteceria se tivesse tido filhos, mas não o consigo imaginar. Não fui muito feliz enquanto criança, portanto não tenho a certeza se seria feliz como pai. Não faço a mínima ideia."

Então, como é que arranjou a confiança para fazer o que queria? "Confiança enquanto adolescente? Porque sabia do que gostava. Gostava de ler, ouvir música e de gatos, estas três coisas. Mesmo sendo apenas uma criança, era feliz porque sabia do que gostava e essas três coisas mantiveram-se constantes desde a minha infância. Ainda hoje sei do que gosto. E isso é confiança. Se não sabes do que gostas, estás perdido."

A opinião de Murakami no Japão é requisitada para quase todos os assuntos uma vez que é um dos intelectuais mais reconhecidos do seu país. Por ser tão tímido e modesto, não aprecia aparições públicas, mas dirige-se a todas as pessoas através dos seus livros.

 Logo após o atentado com gás Sarin em 1995 numa estação de metro em Tóquio, escreveu Underground - a Mentalidade de Tóquio e a Mentalidade Japonesa, um conjunto de ensaios jornalísticos sobre o evento. Murakami sente-se na obrigação de representar o seu país como escritor japonês e aceita receber publicidade no estrangeiro, enquanto a recusa no seu próprio país. Apesar de ter traduzido vários romances ocidentais para a língua japonesa, incluindo as obras do seu autor favorito, Raymond Chandler, admite que traduzir a partir da própria língua para outro idioma já é mais difícil. Nunca traduziria os seus próprios livros, no entanto discute algumas dúvidas relacionadas com determinadas palavras com os seus tradutores.

Murakami encontrava-se em Honolulu no início deste ano quando o terramoto e tsunami se abateram sobre o Japão. Mudou o país, diz. "As pessoas perderam a sua confiança. Esforçámos-mos imenso após o final da guerra. Durante 60 anos, quanto mais ricos éramos, mais felizes nos tornávamos. Mas no final, não éramos felizes, por mais que trabalhássemos. E surgiu o terramoto, muitas pessoas tiveram de ser evacuadas, tiveram de abandonar as suas casas e cidades. Uma tragédia. E estávamos orgulhosos da nossa tecnologia, mas a nossa central nuclear acabou se tornar no nosso pesadelo. O que fez as pessoas começaram a pensar que tínhamos de mudar drasticamente de estilo de vida. Creio que foi um grande ponto de viragem para o Japão."

Compara o acontecimento com o atentado de 11 de Setembro, dizendo que também alterou a História do mundo. De um ponto de vista de um escritor, é um "evento milagroso", demasiado improvável para ser real. "Quando vejo aqueles vídeos dos dois aviões a despenharem-se contra as torres, parece-me um milagre. Não é politicamente correcto dizer que é bonito, mas tenho de admitir que existe uma certa beleza no acontecimento. É horrível, é uma tragédia, mas mesmo assim existe beleza. Parece demasiado perfeito. Nem posso acreditar que, de facto, aconteceu. Dou por mim a questionar-me que se os aviões não se tivessem despenhado contra as torres, o mundo seria tão diferente do que é agora."

As mudanças que estão afectar os japoneses devem-se em parte, diz Murakami, ao facto de terem perdido muito e de terem de questionar o que realmente interessa. As suas prioridades são simples, continua. Por exemplo, não faz ideia de quanto dinheiro tem. "Sabe, se formos rico, a melhor coisa é o facto de não termos de pensar no dinheiro. A melhor coisa que podemos comprar com ele é a liberdade e tempo. Não sei quanto ganho por ano. Não faço ideia. Também não sei quanto pago de impostos e nem quero pensar nisso."

Pausa durante algum momento.

“É lamentável, o meu contabilista e a minha mulher é que tratam disso. Não me deixam saber de nada. Apenas trabalho."

Ele deve mesmo confiar na sua mulher! "Estamos casados há 40 anos ou isso. Ela ainda é minha amiga. Conversamos, conversamos sempre. Ajuda-me imenso. Aconselha-me sobre os meus livros. Respeito a sua opinião. Por vezes discutimos.”

A sua opinião, por vezes, é dura. "Sim, por vezes é."

Talvez necessite disso.

"Talvez. Se o meu editor fizesse o mesmo, iria-me chatear." Murakami encolhe os ombros. "Posso deixar o meu editor, mas não posso deixar a minha mulher."

O seu pai faleceu há dois anos, mas a sua mãe ainda está viva. Murakami espera que os seus pais tenham ficado felizes com o seu sucesso enquanto escritor, mas no entanto permanece a dúvida. Murakami tem as suas distracções: É membro de um clube de corrida no Havai e é, de todos, o mais velho, afirma. Corre tanto quanto escreve, como quem diz, todos os dias. A consistência é tudo. "Gosto de ler livros. Gosto de ouvir música e de comprar álbuns. E gosto de gatos. De momento não tenho nenhum gato, mas se estiver a passear e vir um gato, então fico feliz."


segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Artigo da Vanity Fair


Artigo da edição da Vanity Fair de Novembro, que pode ser lido na língua original aqui. Texto de Paul Theroux. Fotografia de Gasper Tringale. Traduzido pela equipa do MURAKAMI PT do inglês.


Um romance japonês de 932 páginas, passado em Tóquio, no qual as palavras «sushi» e «sake» nunca chegam a aparecer, mas recheado de referências a vinho francês, assim como a Proust, a Fay Dunaway, ao livro The Golden Bough, a Duke Ellington, a Macbeth, a Churchill, a Janácek, a Sonny e Cher, e, a partir do sugestivo título, a George Orwell? Bem-vindos ao mundo 1Q84 de Haruki Murakami, à primeira-vista um autêntico calhamaço, mas que acaba por se provar uma leitura agradável, seguindo uma linha simétrica e multifacetada, mais ou menos como um edifício de três andares do século XIX até onde é possível fazer a comparação (no Japão, entre 2009 e 2010, foi lançado em três volumes, todos eles com grande sucesso). Tendo-lhe sido colada a etiqueta de realismo-mágico, na verdade apresenta uma estrutura mais próxima da Dickensiana (Charles Dickens) ou Trollopiana (Anthony Trollope). Por coincidência, tal como Trollope, Murakami costuma levantar-se às quatro e meia da manhã, escrevendo até por volta do meio-dia – e depois disso, agora ao contrário de Trollope, treina os seus triatlos.

“Uma história de amor” não faz justiça ao padrão propulsivo deste enredo, às mortes e desaparecimentos nos mundos paralelos de duas personagens, Aomame («Ervilha») e Tengo. Estes dois não se encontram há vinte anos, mas cada um deles está presente na memória um do outro. Aomame tem feições suaves, é forte, indiferente aos homens parecidos com Sean Connery, e assim que um deles decide aquecer a sua vida ela revela-se como uma dedicada assassina. Tengo é um escritor tímido, envolvido na revisão de um romance escrito por uma rapariguinha. Estamos no ano de 1984, ou será antes um lapso temporal, 1Q84? 

Explícito, ainda que subtil e onírico, combinando agressividade com um certo capricho, e mais erótico do que o habitual em Murakami, esta é a tentativa mais incansável e magistral do autor no desejo e na busca pelo Todo.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Dia 25 chega aos EUA...


1Q84 nos EUA. Dia 25 de Outubro. Três breves vídeos que ilustram algumas das facetas desta edição americana; para mim, o design é dos mais bonitos entre as capas de Murakami.


O booktrailer oficial de 1Q84.


Folheando a edição americana.


O designer da capa revela-nos alguma da sua inspiração.


domingo, 16 de outubro de 2011

Entrevista ao The Guardian [Parte 1/2]


Primeira metade da entrevista publicada no THE GUARDIAN, que podem ler neste link. A tradução foi feita pela equipa do blog MURAKAMI PT.

O novo romance de Haruki Murakami, 1Q84, tem 1.000 páginas e é publicado em três volumes. O autor demorou três anos a escrevê-lo, mas é possível ler quase metade da obra no voo de 11 horas entre Nova Iorque e Honolulu (Hawaii). Murakami reage cabisbaixo a esta notícia – a relação entre o tempo de ler e o de escrever nunca é muito encorajadora para um escritor – e, no entanto, se alguma coisa consegue testar o poder que um romance tem em si, é lê-lo na zona de trás da classe económica num voo de longo curso. Durante aquelas 11 horas, desaparecemos completamente para dentro do mundo de Murakami. 

Estamos na suite presidencial do Hyatt, em Waikiki, observando uma praia de sonho recortada entre montanhas. Murakami, que aos 62 anos ainda aparenta ser um skater adolescente, divide o seu tempo entre as suas casas no Hawaii, Japão e uma terceira que ele localiza como sendo Logo Ali. É para aí que ele desaparece todas as manhãs enquanto escreve os seus livros, um lugar povoado do tipo de personagens que vieram a definir o estilo de Murakami: enigmáticas, inexpressivas, carregadas de emoções fortes reprimidas, e apresentando-as com um destacamento tal que, facto não comum para um escritor que vende milhões, lhe deram o estatuto de autor de culto. Antes de ter partido para o Hawaii, um amigo meu confessa-me que o seu entusiasmo por Murakami é parcialmente assente no desejo de querer ser como o tipo de pessoas que gostam dele. 

«Não me revejo como um artista,» confessa o autor mais do que uma vez ao longo da entrevista. «Sou apenas um tipo que escreve. E é isso.» 

Murakami tem a seu favor o passado como gerente de um clube de jazz na década dos seus vinte anos, e a igualmente interessante rotina de Homem de Ferro. Como recentemente revelou na sua memória Auto-Retrato do Escritor Enquanto Corredor de Fundo, levanta-se às quatro da manhã quase todos os dias, escreve até às nove, passa a tarde a treinar para maratonas e a passear por lojas de vinis antigas, e deita-se com a sua mulher às 9 da noite. O regime é quase tão famoso como os seus próprios livros, e parece ter o aspecto de uma limpeza correctiva à confusão que foram os seus vinte anos. Também é o tipo de disciplina necessária para desencantar 1.000 complexas páginas no espaço de três anos. 

Para Murakami, é tudo uma questão de força. «É físico. Se vais escrever continuamente durante três anos, todos os dias, é preciso estares forte. Claro que tens de estar forte mentalmente, também. Mas em primeiro lugar tens que estar forte fisicamente. Isso é muito importante. Precisas de estar fortalecido quer física, quer mentalmente.» 

O seu hábito de repetição, quer seja toque estilístico ou efeito secundário das traduções feitas do japonês, produzem o efeito de fazer com que tudo o que Murakami diz soe como infinitamente profundo. Já escreveu acerca da importância metafórica das suas corridas; para completar uma acção a cada dia define exemplos para a sua escrita. «Sim», diz ele. «Hmmmm.» Faz um longo som contemplativo. «Preciso de força porque tenho de abrir a porta.» Faz o gesto de abrir uma porta. «Todos os dias vou para o meu escritório, sento-me à secretária e ligo o computador. Nesse momento, tenho de abrir a porta. É uma porta grande, pesada. Tens de entrar na Outra Sala. Metaforicamente, claro. E tens de voltar novamente a este lado da sala. E tens de fechar a porta. Por isso, é precisa força física para abrir e fechar a porta. Se eu perder essa força, nunca mais poderei escrever um romance. Poderei escrever alguns contos, mas nunca um romance». 

Existe, então, uma parcela de medo que conduz a essas acções de todas as manhãs? 

«É apenas rotina,» diz ele, e ri-se alto e em bom som. «É mais ou menos aborrecido. É uma rotina. Mas rotina é tão importante.» 

Porque, sem ela, existe o caos? 

«É isso. Eu vou até ao meu subconsciente. Tenho de ir ter com esse caos. Mas o acto de ir e voltar é como uma rotina. Tens de ser prático. Cada vez que digo que se uma pessoa quer escrever um romance tem de ser prática, as pessoas aborrecem-se. Sentem-se desapontadas.» Ri-se novamente. Estão à espera de algo mais dinâmico, criativo, artístico. O que eu tenho a dizer é: tens de ser prático.» 

Uma pessoa que se levanta tão cedo consegue ter quase duas vidas. É uma opinião de Murakami, que uma única vida se divide em duas, tanto pelas mudanças radicais como pelas pausas entre a vida exterior e interior da própria divisão pessoal. No seu novo romance, a heroína, Aomame – “Ervilha” em japonês – começa por estar presa no trânsito, de forma realista, dentro de um táxi, numa auto-estrada expressway de Tóquio. Estamos em 1984, um piscar de olho a George Orwell. Para evitar atrasar-se, sai do táxi e desce pelas escadas de emergência até ao nível do chão, onde vai dar por si num mundo paralelo, que virá a chamar 1Q84. Como a maioria da ficção de Murakami, mistura uma narrativa realista com certos traços surreais – relógios que levitam, cães que explodem, umas entidades designadas de “Povo Pequeno” (Little People) que emergem de dentro da boca de uma cabra morta – que desafiam a sanidade do leitor e fazem-nos questionar se não passará tudo de nonsense, dúvida que o próprio autor incorpora no romance.
 «As pessoas são deixadas num amontoado de misteriosos pontos de interrogação,» diz um dos editores de 1Q84 para o escritor. «Os leitores são capazes de interpretar esta falta de esclarecimento como um sinal de ‘preguiça do autor’.» 

Ao que o autor responde, «Se um autor for bem-sucedido ao escrever uma história ‘fá-la de uma maneira tão excepcionalmente interessante’ que ‘leva o leitor consigo até ao último ponto final’, o que poderá levar a que se classifique o seu autor como ‘preguiçoso’.» No primeiro mês após o lançamento, 1Q84 vendeu 1 milhão de cópias no japão. 

Os próprios elementos que compõem o passado de Murakami estão envoltos em mistério, até para ele próprio. Não sabe dizer porque é que se tornou um escritor. Simplesmente ocorreu-lhe, de repente, enquanto assistia a um jogo de basebol, e sem que antes tivesse sentido qualquer inclinação para isso. Estava mesmo à entrada dos 30 anos, a tomar conta do bar de jazz – que chamou de Peter Cat, em homenagem ao seu gato. Estávamos em 1978. O seu período de rebelião tinha mais ou menos acabado. Tinha crescido nos anos 60, filho único de um professor universitário e de uma dona-de-casa, e, tal como o resto da sua geração, rejeitara o percurso que seria esperado que seguisse. Casou logo que saiu da universidade, e em vez de prosseguir com mais estudos, pediu um empréstimo para abrir o bar de jazz e, assim, corresponder ao seu amor pela música. Todos à sua volta, os seus amigos, também se rebelaram. Alguns suicidaram-se, uma coisa que Murakami refere frequentemente na sua escrita. «Eles partiram,» diz. «Foi uma época caótica, e ainda sinto a falta deles. Talvez por isso eu me sinta estranho por ter 63 anos, sinto-me como uma espécie de sobrevivente. Sempre que penso nele, sinto uma obrigação de estar vivo, tenho de estar fortemente vivo. Porque não quero desperdiçar anos da minha vida… devia ser o propósito mais importante – a vida. Por ter sobrevivido, tenho obrigações de viver completamente. Por isso, sempre que escrevo ficção, de vez em quando lembro-me dos que morreram. Os amigos.» 

Olhando para trás, ele vê quão precária era a sua situação. Estava afundado em dívidas, a trabalhar muitas horas por dia no bar com a sua mulher, olhando para um futuro incerto. «Em 1968 ou 69, qualquer coisa podia acontecer. Era entusiasmante, mas, ao mesmo tempo, muito arriscado. As apostas eram extremamente grandes. Se ganhássemos, podíamos arriscar maiores apostas; mas se perdêssemos, estávamos feitos.» 

Isso significa que o bar foi como um jogo de dados? 

«Aaaaargh,» diz Murakami. «O casamento é que foi esse jogo! Tinha 20 anos, ou 21. Não sabia nada sobre o mundo. Era estúpido. Inocente. Foi uma espécie de aposta nos dados. Com a minha mulher. Mas sobrevivi, isso é que importa.»

Continua na segunda metade, a ser brevemente publicada.


quinta-feira, 13 de outubro de 2011

1Q84 em Portugal: 8 de Novembro!

Eis que foi hoje divulgada a capa da versão portuguesa de 1Q84! Alterando ligeiramente o grafismo a que nos tinha habituado nos livros anteriores do autor, mas mantendo como base as cores, o conceito, e a capa mole, a Casa das Letras presenteia-nos com um resultado cativante e peculiar. De relembrar que se trata apenas do primeiro volume da obra, que está dividida em três livros distintos.

A data de lançamento de 1Q84 em Portugal está marcada para 8 de Novembro.

Ao longo dos últimos meses os leitores portugueses de Haruki Murakami têm aguardado com alguma ansiedade pela publicação da obra em língua portuguesa. E agora, com esta divulgação da capa e da data de lançamento, parece que estamos finalmente com o 1Q84 à porta. Nas primeiras reacções que recolhemos junto deles, os leitores classificam esta capa de «bonita», «original e muito atractiva», e «muito familiar, são as cores a que me habituei em Murakami».

Enquanto aguardamos pela vinda à luz do dia de mais informações interessantes, como a sinopse, e outros dados específicos, podemos já consultar o artigo de pré-venda no site da FNAC, e ainda receber de oferta um outro livro de Haruki. O preço de capa é 18€.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

E não é que o elefante se evaporou?...



Não parti para a leitura desta colectânea de contos com o maior dos ânimos. Como por diversas vezes já referi, estou quase sempre de pé atrás quando inicio a leitura de um dos livros de Haruki Murakami, não obstante ele ser, provavelmente, o meu autor preferido. Como se de um sistema de segurança se tratasse, pego num livro seu com a convicção de que, talvez desta vez, não vá ser uma leitura tão abismal como as anteriores. Neste caso, e infelizmente, este meu palpite no vazio revelou-se algo verdadeiro.

Definitivamente, os contos são uma realidade à parte de um romance. O domínio da arte do conto é paralelo ao da narrativa grande. Por um lado, não pode ser um romance condensado em vinte páginas; por outro, também não pode ser um excerto sem pés nem cabeça, como se de um capítulo se tratasse. Na busca deste equilíbrio, creio eu, reside a técnica de um bom contador destas curtas narrativas. Sendo este o primeiro livro do género que leio de Haruki Murakami, concluo que este talento da arte de contar histórias pequenas é um pouco desiquilibrado nele... numas consegue dar a volta e sair por cima, noutras acabamos por nos perder na névoa indefinida daquilo que não conseguimos identificar bem... e esta minha explicação foi confusa, de certeza.

Temos quatro tipos de contos em «O Elefante Evapora-se». Neste sentido: uns parecem ser fruto de um planeamento calculista e estratégico, outros assemelham-se a primeiros capítulos inacabados, outros resultam de forma espontânea na sua liberdade, e outros ainda não passam de nevoeiro difuso emaranhado. Este nevoeiro, presente em alguns contos mais pequenos, mas também noutros maiores, de tão pouco palpável, não me permitiu fixar-me emocionalmente às suas histórias.

Há contos muito divertidos, outros comoventes, outros maravilhosos. Os preferidos: «O Comunicado dos Cangurus» fez-me rir como poucas páginas, na minha vida de leitor, alguma vez conseguiram. «Sono» arrepia do princípio ao fim. «Os Celeiros Incendiados» tem qualquer coisa que me agarrou completamente, assim como «A Janela», apesar de pequenino. «Um Barco Lento para a China» quase me emocionou, embora não saiba explicar porquê. O conjunto dos últimos três contos também foram muito interessantes, embora destaque «O Último Relvado da Tarde», pelas imagens e aromas transmitidos.

Depois há o caso dos contos intermédios, que na minha opinião estão bem construídos, e são interessantes, mas aos quais não criei por qualquer razão um laço emocional com as suas narrativas. E tenho pena em relação a esses. Tenho pena porque sinto, pela primeira vez, um certo grau de desilusão relativamente a uma obra de Murakami. Embora «Underground» e «Hear the Wind Sing» também não tenham sido propriamente umas pérolas, o caso de «O Elefante Evapora-se» é diferente, porque com este, lá no fundo, eu estava à espera de me deleitar.

Não está em causa a qualidade de Murakami. Todo o surreal, o imaginário fantástico, as vidas expostas das personagens, a sinceridade brutal com que o quotidiano é recriado, tudo isso me continua a entreter neste autor. Mas, talvez pela duração que cada conto tem, foram poucas as ligações que criei, muito súbitas e repentinas. Na minha opinião, Murakami move-se bem na área do conto, mas não tanto como verdadeiramente domina o romance. Pelo menos na maioria das vezes. Contudo, e apesar de todas as coisas que disse, estamos perante uma leitura descontraída, divertida, relativamente leve (embora seja discutível), e aconselhada por mim!


segunda-feira, 27 de junho de 2011

Um ano de Murakami... em português!


Há precisamente um ano, eu e a Marta abrimos este espaço. No decorrer de uma conversa sobre o autor, que ambos líamos e adorávamos, confessámos um facto que muito nos entristecia: não havia nenhuma fonte portuguesa que se dedicasse exclusivamente a Haruki Murakami. Com uma vasta obra, apontado anualmente para vencedor do Prémio Nobel da Literatura, um universo cativantemente complexo, e uma personalidade com opiniões tão bem vincadas... parecia-nos injusto os leitores portugueses não terem essa fonte de informação constante.

Mesmo alargando a nossa linha de horizonte, vejamos a questão de maneira internacional, muito poucos sites se dedicavam a Murakami. Facto. Os que haviam, poucas vezes eram actualizados. Ao criarmos o «Murakami PT» a 27 de Junho do ano passado, tínhamos ambos entrado de férias há dias, decidimos ser a hora de mudar. Num passo para o vazio, arriscámos o nosso tempo e a nossa dedicação, a um projecto no qual acreditávamos.

Confesso que hoje o blog é um fonte de alegria. Mas não total. Incrível, o que um ano depois conseguimos fazer. O estabelecer contacto com a tradutora portuguesa Maria João Lourenço foi o acontecimento que mais destaco - a entrevista presencial, as crónicas que nos foi enviando... incrível. E a ela muito agradeço pela ajuda que nos prestou em tantas situações!

Depois a página de Facebook: 500 seguidores em menos de 6 meses. Num modelo mais diário e funcional, informamos os leitores das notícias, dos links, das informações de relevo que vão surgindo acerca do autor. Esporadicamente, sempre, porque com Murakami já se sabe - durante 3 meses não ouvimos falar dele, e depois, quando recebe "um" Prémio Internacional da Catalunha, chovem informações, entrevistas, e discursos!

Muitos projectos estão por realizar, alguns deles estão na minha cabeça desde o dia que abri o blog. Entre eles está um índice de críticas portuguesas a livro de Haruki Murakami - para caad livro, uma lista de links para opiniões publicadas em blogs. O que exige, naturalmente, uma pesquisa vasta. Mas não é impossível! E ando a trabalhar nela. Reforçar a nossa "parceria" com a tradutora, com a Casa das Letras (editora que também nos tem ajudado no processo de divulgação), e com os leitores, são também nossos objectivos.

Ao longo deste ano tivémos 16.000 visitas, e só no último mês foram 3.000. O post mais lido, com 400 visitas, foi a nossa tradução do discurso de Murakami na entrega do Prémio da Catalunha, logo seguido da entrevista à tradutora. 12.000 das visitas foram de Portugal, mas temos 2.000 do Brasil, e de muitos outros países, mesmo muitos. A título de curiosidade, 70 visitantes do Japão!

A todos os leitores do blog MURAKAMI PT um enorme agradecimento! Continuem a partilhar connosco o vosso entusiasmo pelas obras do autor! Coloquem as vossas dúvidas, manifestem as vossas opiniões acerca de um determinado livro, força! Têm a página de facebook, ou o email da barra lateral, como preferirem! Este blog é para cada um de vocês. Obrigado, e... parabéns, Murakami PT!


terça-feira, 14 de junho de 2011

Discurso de Murakami na cerimónia de entrega do Prémio Internacional da Catalunha


Todas as fotografias foram tiradas na Cerimónia de Entrega do Prémio Internacional da Catalunha, 9 de Junho de 2011. Texto traduzido pela equipa do MURAKAMI PT do catalão, presente no site oficial da Generalitat de Catalunya.


Haruki Murakami, 9 de Junho de 2011:

'Bona nit!' Se eu fosse o Mick Jagger ou a Lady Gaga diria 'Bona nit, Barcelona!'. Mas como não sou, digo só 'Bona nit!'.

A última vez que estive em Barcelona foi na Primavera de há dois anos atrás. Num dos eventos públicos que realizei, surpreendi-me com a quantidade de leitores que vieram para verem ser assinados os seus livros. Formou-se uma longa fila, e passei mais de uma hora e meia a assinar. Só demorou todo esse tempo porque muitos leitores quiseram cumprimentar-me. Estive ali um bom bocado…

Já fiz sessões de autógrafos em muitas cidades de todo o mundo, mas a única em que os leitores quiseram beijar-me foi aqui em Barcelona. Esta foi apenas uma das muitas situações que me fizeram perceber que Barcelona é uma cidade verdadeiramente maravilhosa. Estou muito feliz por regressar a um tão belo local, com uma história e uma cultura tão avançada.

Infelizmente, não venho hoje falar-vos de beijos, e sim de algo um pouco mais sério. Como todos sabem, a 11 de Março, às 2 horas e 46 minutos, a região japonesa de Tohoku foi vítima de um grave terramoto. Teve uma tal magnitude que fez com que a velocidade de rotação da Terra acelerasse ligeiramente, e o dia prolongou-se por mais 1,8 mil enésimos de segundo.

O terramoto provocou muita destruição, mas o tsunami que se seguiu deixou uma ainda mais terrível marca. Em alguns locais, o tsunami alcançou os 39 metros de altura. 39 metros significa que é impossível para uma pessoa salvar-se, ainda que esta se encontre no 9º andar de um edifício. Todos os que se encontravam perto da costa não conseguiram fugir, e é calculado que aproximadamente 24.000 tenham morrido. Destes, cerca de 9.000 ainda estão desaparecidos. Estas pessoas foram arrastadas pelo tsunami, e os seus corpos não foram até agora encontrados. A grande maioria deve estar enterrada no fundo do mar.

A maioria dos sobreviventes perderam família e amigos, perderam casa e os seus pertences, perderam a restante comunidade, e perderam tudo o que constitui a base das suas vidas. Algumas cidades foram completamente varridas do mapa. Estou certo de que muita gente perdeu até a vontade de viver.

Aparentemente, os japoneses estão acostumados a enfrentar numerosas catástrofes naturais. Entre o final do Verão e o princípio do Outono, uma grande parte do território japonês torna-se alvo de furacões, que todos os anos causam muitos estragos e ceifam vidas. Em todas as zonas do país é registada uma actividade vulcânica significativa. E depois, é claro, há os terramotos. O arquipélago japonês é o extremo oriental do continente asiático, e está perigosamente situado sobre quatro placas tectónicas. Na verdade, é como se vivêssemos num ninho de terramotos.

Com os furacões, podemos saber em que período do dia ele vai chegar, e os locais onde é previsto passar; pelo contrário, os sismos não nos dão qualquer previsão. A única coisa que sabemos é que, com certeza, o último terramoto que sentimos não será o último, isto num futuro próximo: talvez já amanhã haja outro. Muitos especialistas prevêem que nos próximos vinte a trinta anos vão haver, em grande número, terramotos de magnitude 8 na região de Tóquio. E ninguém sabe muito bem o grau de destruição que seria alcançado se o epicentro de um terramoto se localizasse perto de uma metrópole com tanta densidade populacional como Tóquio.

Apesar disso, neste momento em Tóquio existem treze milhões de pessoas a continuarem a sua vida “normal”. Continuam a ir para o emprego em carruagens de metro sobrelotadas, e a trabalharem em altos arranha-céus. Não tenho notícias de que a população de Tóquio tenha diminuído desde o último terramoto.



«Como pode isto ser possível?», devem-se estar a perguntar. Como podem viver tantas pessoas numa cidade onde sabem que podem acontecer coisas tão horríveis? Como justificar esta falta de medo? Na língua japonesa temos uma palavra – “mujô” – que designa o facto de nada ser permanente, não existe nada que dure para sempre. Todas as coisas que existem no mundo se extinguem, tudo se transforma constantemente. Não há um equilíbrio eterno, nada é imutável porque não se pode confiar nelas para sempre. Esta é uma maneira de ver o mundo que provém do Budismo, que apesar de num contexto ligeiramente diferente do conceito religioso “mujô”, está presente na psicologia mental dos japoneses, que herdaram de forma quase intacta da antiguidade a mentalidade que têm como pessoas.

Poderíamos dizer que esta ideia do «tudo tem um fim» implica uma certa resignação com o mundo, isto é, nada do que o homem faça poderá opor-se ao curso da natureza. Contudo, os japoneses conseguiram encontrar uma forma bela de encarar esta resignação.

Se olharem com atenção para a natureza, por exemplo, na Primavera admiram as ‘sakura’, no verão os pirilampos, e no Outono as folhas amarelas dos bosques. Dia a dia, observam tudo com paixão, a cada momento, como uma rotina, quase como se fosse um axioma. Quando chega o tempo respectivo, os locais mais famosos para se verem as flores de ‘sakura’, ou os pirilampos, ou as folhas outonais, enchem-se de gente, e torna-se quase impossível de fazer reserva num hotel.

Porquê?

Porque a beleza das ‘sakura’, dos pirilampos, e das folhas do Outono, desaparece ao fim de um tempo. Os japoneses percorrem inúmeros quilómetros para poderem ver o esplendor da efemeridade destes fenómenos. Mas não se limitam apenas a observar essa beleza, pois também se aliviam ao descobrir como se espalham as flores das ‘sakura’, a luz ténue dos pirilampos, ou como se apagam as cores vivas das árvores. Na verdade, encontram a paz quando a beleza já atingiu o clímax, e começa a desaparecer…

Não sei se as catástrofes naturais têm alguma influência nesta nossa maneira de pensar. Porém, o que é certo é que, ao longo da história, os japoneses têm conseguido superar todos os desastres de que têm sido vítimas, aceitando-os como factos de certa maneira inevitáveis, e, unidos uns com os outros, sobrepondo-se a eles. Portanto, é bem possível que estas experiências anteriores tenham marcado a nossa sensibilidade.

Perante este último grande sismo, todos os japoneses foram tremendamente afectados; ainda que estejamos acostumados a terramotos, estremecemos ante a enormidade dos danos causados. Sentimo-nos impotentes, e sofremos pelo futuro do nosso país.

Contudo, acredito que recuperaremos a moral e nos levantaremos para começar a reconstrução. Neste sentido, estou muito preocupado. Somos um povo que recuperou muitas vezes ao longo da história. Não podemos ficar afectados para sempre. Temos de reconstruir as casas destruídas, reparar as estradas que se danificaram.

Bem vistas as coisas, estamos instalados neste planeta por nossa conta e risco. O planeta não nos pediu que vivêssemos. Por isso não nos podemos queixar que ele tenha tremido um pouco. O facto de tremer de vez em quando é uma das propriedades da Terra, de forma que, quer gostemos quer não gostemos, não temos outro remédio que não conviver com esta natureza.

Mas hoje quero falar de coisas que, ao invés dos edifícios e das estradas, não se podem renovar facilmente. Por exemplo, da ética e do modelo. Nem uma coisa nem a outra são objectos que tenham uma forma definitiva. Uma vez danificadas, custa muito voltar a transformá-las no que eram. Isso é assim porque não são coisas que se possam fazer no imediato, assim que se tenha reunido uma série de máquinas, mão-de-obra, e as matérias-primas necessárias.

Refiro-me, concretamente, à central nuclear de Fukushima.



Como deverão saber, pelo menos três dos seis reactores afectados pelo terramoto e pelo tsunami na região de Fukushima ainda não conseguiram ser reparados, e continuam a emitir radiação na zona. Ocorreu a fusão de um reactor, o que provocou a contaminação nas terras em redor, e, ao que parece, verteu para o mar de águas residuais uma alta concentração de radioactividade.

Cem mil pessoas viram-se obrigadas a deslocar-se da zona próxima da central nuclear. Os campos, os prados, as fábricas, as zonas comerciais, e os portos ficaram subitamente desertos e abandonados. É muito possível que as pessoas que tiveram de fugir da zona não consigam voltar a viver. E, custa-me imenso dizê-lo, parece que os danos não afectaram somente o Japão, mas também alguns países vizinhos.

A causa desta situação trágica é evidente. Esta desgraça só aconteceu porque as pessoas que construíram a central nuclear não tiveram em conta que poderia haver um tsunami grande. Alguns especialistas avisaram que, nesta região, já se tinha dado um tsunami desta magnitude, e pediram que se revissem os planos de segurança; mas a companhia que geria a central não os tomou a sério. A ideia de investir uma grande quantidade de dinheiro por um tsunami que pode passar, ou não, uma vez em vários séculos, não era muito atractiva para uma companhia que aspira a ser rentável.

Por outro lado, parece que o Governo, que deveria ter controlado estritamente as medidas de segurança da central, baixou a guarda para levar adiante a sua política nuclear.

É nosso dever averiguar o que se passou, e, no caso de se ter cometido algum erro, fazer dele público. Por culpa destes erros, mais de cem mil pessoas viram-se obrigadas a abandonar esta região e a mudar radicalmente o seu estilo de vida. Que aborrecimento. É natural.

Por algum motivo, nós japoneses somos um povo que não nos aborrecemos demasiado. Sabemos ter paciência, mas não expressamos muito esse sentimento. Neste sentido, somos muito diferentes dos nossos amigos barceloneses. Mas, neste caso, acho que mesmo os cidadãos japoneses se aborreceram, se cansaram.

Deveríamos deitar as culpas a nós mesmos, por termos permitido, ou tolerado, a existência deste sistema corrompido. Porque o que se passou é um problema que afecta profundamente a nossa ética e o nosso modelo.

Como sabem, os japoneses são o único povo que sofreram a experiência de uma bomba atómica. Em Agosto de 1945, as cidades de Hiroshima e Nagasaki foram alvo de bombas atómicas lançadas pelos bombardeiros do exército norte-americano – o que provocou mais de duzentos mil mortos. A maioria das vítimas eram civis. Agora não vamos começar a discutir se foi uma acção justa ou não.

O que quero dizer é que, para além dos duzentos mil que morreram logo que se deram as explosões, muitos dos sobreviventes morreram ao fim de um certo tempo, depois de muitos sofrimentos provocados pela radiação. Através do sofrimento destas vítimas, nós japoneses conhecemos o poder de destruição de uma bomba atómica, assim como a gravidade das feridas que a radiação provoca ao mundo e ao corpo humano.

No caminho que o Japão tem percorrido desde a Segunda Guerra Mundial, existiram dois ideais centrais: o primeiro foi a recuperação económica, e o segundo a renúncia à guerra, isto é, o compromisso de que, aconteça o que acontecer, não recorreremos ao uso da força militar. Estes dois novos objectivos que acompanharam a nação ajudaram-na a converter-te num país rico, na aspiração pela paz.

Na placa do monumento das vítimas de Hiroshima estão inscritas as seguintes palavras: «Descansem em paz, pois o erro não se repetirá».

São palavras maravilhosas. Somos, ao mesmo tempo, as vítimas e os culpados. Este é o significado que está implícito nestas palavras. Perante uma força tão abrasadora como a nuclear, somos ao mesmo tempo vítimas e culpados. Na medida em que todos estamos debaixo da ameaça dessa força, tomos somos vítimas, mas também na medida em que permitimos que acontecesse o que veio a desencadear a sua utilização, também somos culpados.



Hoje, 66 anos depois do lançamento das bombas atómicas, o motor número um da central nuclear de Fukushima está há três meses a libertar radiação e a contaminar a terra, o mar, e o ar à sua volta. Contudo, não há ninguém que saiba como o parar. Esta é a segunda grande desgraça nuclear que nós japoneses sofremos na nossa história, só que desta vez ninguém nos lançou nenhuma bomba atómica. Fomos nós próprios que a provocámos, cometemos um erro com as nossas mãos, fizemos mal ao nosso país, destruímos a nossa própria vida.

Porque é que isto aconteceu? Onde está o medo da energia nuclear que tínhamos mostrado desde o final da Segunda Guerra Mundial? O que é que danificou e corrompeu a sociedade rica e pacífica que tentámos construir ao longo de todos estes anos?

O motivo é bastante delicado. A ‘eficiência’.

As companhias eléctricas asseguram que os reactores nucleares são o sistema de produção de electricidade mais eficiente. Isto é, são o sistema que dá mais vantagens. Pela sua parte, sobretudo desde a primeira crise de petróleo, o Governo japonês abdicou da estabilidade de abastecimento de petróleo, e adoptou a produção de energia nuclear como uma política nacional. As companhias eléctricas gastaram grandes quantidades de dinheiro em publicidade, compraram os meios de comunicação, e fizeram com que os cidadãos acreditarem que a produção de energia nuclear era absolutamente segura. Então, quando nos demos conta, aproximadamente 30% da produção eléctrica no Japão dependia da produção de energia nuclear. Sem que os cidadãos se apercebessem, o arquipélago japonês, pequeno e com abundantes terramotos, tinha-se convertido no terceiro país do mundo com mais centrais nucleares.

E, chegados a este ponto, não há volta a dar. É um acto consumado. Mesmo entre os cidadãos se prolonga a sensação de que não há outro remédio a não ser depender da energia nuclear. No Japão faz muito calor, e não pôr a trabalhar o ar condicionado no Verão é quase uma tortura. Às pessoas que põem a dúvida a energia nuclear se cola a etiqueta de “sonhadores pouco realistas”.

E,, agora, encontramo-nos como nos encontramos. Os reactores nucleares, que em teoria eram tão eficientes, provocaram uma situação dramática, como se alguém tivesse aberto a porta do inferno. E esta é a realidade.

A realidade dos que estão a favor da energia nuclear, e que pediram a quem está contra que tivessem em conta a realidade, não era a realidade, mas somente uma “conveniência” superficial. O que faziam era dizer “realidade” no lugar de “conveniência”, para mudar a lógica sem que ninguém se desse conta.

Isto levou consigo não só o derrube do mito do “poder tecnológico” do qual o Japão se orgulhou durante tantos anos, mas também representou a queda da ética e do modelo dos japoneses, que permitimos que nos embrulhassem nesta farsa. Agora, criticamos a companhia eléctrica e o Governo. É justo, e necessário, que o façamos. Mas também devemos deitar as culpas a nós mesmos. Somos vítimas e culpados ao mesmo tempo. É uma questão para reflectirmos seriamente. Senão, pode ser que o erro se repita qualquer dia.

«Descansem em paz, pois o erro não se repetirá». Temos que voltar a gravar estas palavras no coração. O físico Robert Oppenheimer foi uma das pessoas mais intervenientes na criação da bomba atómica durante a Segunda Guerra Mundial, e quando se apercebeu do desastre que a bomba tinha provocado em Hiroshima e Nagasaki ficou muito afectado. Pediu uma audiência com o presidente Truman e disse-lhe:
- Presidente, tenho as mãos manchadas de sangue.
O presidente Truman tirou do bolso um pano branco bem limpo e disse-lhe:
- Limpe-as com o meu lenço.
Nem é preciso dizer que no mundo não há lenço suficientemente limpo para limpar tanto sangue.

Nós, japoneses, deveríamos continuar a dizer não à energia nuclear. Esta é a minha opinião.




Deveríamos dedicar o poder tecnológico, o conhecimento e capital social que temos como país, na busca de forma de energia efectiva que pudesse substituir a nuclear. Ainda que todo o mundo se ria, e diga que os japoneses são malucos por não usarem a energia nuclear, que é a mais eficiente, devíamos seguir firmes, nesta renúncia à energia nuclear resultante do medo que adquirimos na experiência das bombas atómicas. A procura de uma forma de energia que não utilizasse a energia nuclear deveria ter sido o motivo principal do caminho que o Japão percorreu desde a guerra.

Esta teria sido a maneira de assumir uma responsabilidade colectiva perante as numerosas vítimas de Hiroshima e Nagasaki. No Japão havia uma ética, um modelo, e uma mensagem social fortes como esta. Era uma grande oportunidade para os japoneses terem feito uma contribuição real para o mundo. Só que, entusiasmados com o rápido crescimento económico, deixamo-nos guiar pelo critério fácil da “eficiência”, e perdemos de vista este caminho tão importante.

Tal como disse antes, por mais graves e trágicos que sejam os danos causados pelas catástrofes naturais, nós japoneses somos capazes de superá-los. Ainda que o acto de nos sobrepormos a eles exija que as pessoas tenham um espírito mais forte e mais profundo. De uma maneira ou de outra, vamos prosseguir.

A reconstrução dos edifícios e das estradas é um trabalho da responsabilidade dos especialistas. Mas a regeneração da ética e do modelo é uma tarefa que recai sobre nos todos. O sentimento natural de chorar os mortos, de apoiar as pessoas que sofrem pelo desastre, e de não esquecer a dor e as feridas que sofremos, vão ajudar-nos a empreender esta tarefa. Será uma tarefa modesta e silenciosa, que irá requerer muita perseverança. Uma tarefa que temos que fazer reunindo todas as forças, como as pessoas de uma aldeia se reúnem de manhã cedo, na Primavera, para irem para o campo lavrar a terra e plantar as sementes. Cada um da maneira que possa, mas com um único coração.

Nesta grande tarefa colectiva, há uma parte que recai sobre os especialistas das palavras, isto é, sobre os que ganham a vida a escrever. Nós temos que ligar a nova ética e o novo modelo a novas palavras. E temos que fazer com que nasçam e cresçam histórias cheias de vida. Devem ser histórias que possamos partilhar. Devem ser histórias que, como canções nas plantações, tenham ritmo e animem as pessoas. Durante muitos anos reconstruímos um Japão assolado pela guerra. Agora temos que voltar a este ponto de partida.

Tal como disse no princípio, vivemos num mundo de mudança e transição, marcado pelo conceito de “mujô”, que nos diz que qualquer estilo de vida muda e acaba por desaparecer. Que o Homem é impotente perante a força enorme da natureza. A consciência desta transitoriedade é uma das ideias básicas da cultura japonesa. Ao mesmo tempo, e apesar de respeitarmos as coisas que desapareceram e estarmos conscientes de que vivemos num mundo frágil em que tudo pode desaparecer a qualquer instante, nós japoneses também temos uma mentalidade positiva que nos impulsiona a viver com alegria.

As minhas obras são muito bem recebidas na Catalunha, e estou orgulhoso por me ter sido atribuído um prémio tão importante como este. Vivemos em lugares que estão muito distantes, e falamos línguas diferentes. A cultura em que nos baseamos também é diferente. Contudo, todos somos cidadãos do mundo, e temos os mesmos problemas, as mesmas tristezas e alegrias. Justamente por isso é possível que umas quantas histórias escritas por um escritor japonês tenham sido traduzidas para o catalão e lidas pelas pessoas daqui. Fico muito contente por partilhar uma mesma história com vocês. O trabalho dos escritores é sonhar. Mas ainda temos um trabalho mais importante: partilhar os nossos sonhos com os outros. É impossível ser-se escritor sem ter esta sensação de querer partilhar o que se escreve.

Sei que, ao longo da história, os catalães superaram muitas dificuldades, e que em certas épocas sofreram alguma crueldade, mas que apesar disso sobreviveram firmemente e conservaram uma cultura muito rica. Estou certo que há muitas coisas que podemos partilhar. Penso que seria fantástico se tanto vocês como nós, tanto na Catalunha como no Japão, pudéssemos ser uns “sonhadores pouco realistas”, e pudéssemos formar uma “comunidade espiritual” aberta, que superasse fronteiras e culturas. Penso que poderia ser um bom ponto de partida para a regeneração, depois dos vários desastres e dos ataques terroristas terrivelmente trágicos que temos vivido estes últimos anos.

Não devemos ter medo de sonhar. Não podemos deixar-nos engatar pelas causas dos desastres, que se apresentam com o nome de “eficácia” e “conveniência”. Devemos ser “sonhadores pouco realistas”, avançando em passo firme. Os humanos morrem e desaparecem. Mas a humanidade perdura. É algo que se prolonga indefinidamente. Acima de tudo, temos de crer na força da humanidade.

Por último, queria oferecer a quantia monetária deste prémio às vítimas do terramoto e do acidente na central nuclear de Fukushima. Estou profundamente agradecido ao povo catalão e à Generalitat de Catalunya que me ofereceram esta oportunidade. Gostaria ainda de expressar a minha mais profunda solidariedade para com as vítimas do terramoto de Lorca.