quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Realidade A e Realidade B [Crónica de Haruki Murakami]


Há um mês foi publicada no The New York Times uma crónica de Haruki Murakami, traduzida para o inglês por Jay Rubin, e enquadrada na Agenda Global 2011. O texto é agora traduzido pelo MURAKAMI PT, com as suas imperfeições naturais, mas com a equipa do blog segura de que fez a sua melhor tentativa possível ao traduzir as palavras. Esperemos que fiquem bem com esta mensagem do autor japonês, que serve perfeitamente de mensagem de ano novo, para que todos entremos em 2011 com optimismo e determinação.



Quais foram os acontecimentos que demarcaram o espírito do século XXI do do XX? De uma perspectiva global, foram, primeiro que tudo, a destruição do Muro de Berlim e o consequente rápido fim da Guerra Fria; e em segundo, a destruição das torres do World Trade Center no 11 de Setembro de 2001. O primeiro acto de destruição foi cheio de esperanças brilhantes, enquanto que o segundo foi uma devastadora tragédia. A convicção global no primeiro acontecimento de que “o mundo será melhor do que nunca” foi totalmente deitada por terra pelo desastre do 11 de Setembro.

Estes dois actos de destruição, que ocorreram nos diferentes lados do virar do milénio, com contextos tão diferentes em cada um deles, parecem ter-se juntado num único par que transformou fortemente a nossa mentalidade.

Ao longo dos últimos 30 anos, escrevi ficção em variadas formas, desde contos a romances longos. A história é desde sempre um dos mais fundamentais conceitos humanos. Apesar de cada história ser única, funciona como parte integrante de algo que pode ser partilhado e trocado com os outros. Essa é uma das coisas que dá às histórias o seu significado. As histórias mudam de forma livre à medida que vão inspirando o ar de cada nova era. Tendo como princípio serem mediadoras de transmissão cultural, as histórias variam drasticamente quanto ao modo de apresentação que usam. Como estilistas da moda, nós escritores vestimos histórias, à medida que elas mudam de forma no dia-a-dia, em palavras vestidas à sua medida.

Visto de uma perspectiva de tal forma profissional, parece que a interface entre nós e as histórias que encontramos enfrentam uma mudança maior do que nunca no período anterior ao mundo começar a traçar o princípio de um milénio. Se esta mudança é positiva ou menos bem aceite, isso não estou em posição de julgar. Tudo o que posso dizer é que provavelmente nunca voltaremos ao ponto de onde começámos.

Falando por mim, uma das razões por que sinto isto tão fortemente é o facto da ficção que escrevo estar ela mesma em perceptível transformação. As histórias dentro de mim vão mudando de forma à medida que inalam novas atmosferas. Eu consigo sentir claramente esse movimento a acontecer dentro do meu corpo. Além disso, ao mesmo tempo, existe uma mudança substancial na maneira como os leitores recebem a ficção que escrevo.

Tem havido uma mudança especialmente particular na postura dos leitores europeus e americanos. Até agora, os meus livros eram vistos em termos do século XX, entrando nas suas mentalidades através de portas denominadas como “post-modernismo”, ou “realismo mágico”, ou “orientalismo”; mas desde o momento em que as pessoas deram as boas-vindas ao novo século, gradualmente começaram a remover do seu dicionário mental os “ismos” e a aceitar os mundos das minhas histórias mais perto daquilo que realmente são. Tenho uma forte percepção desta mudança sempre que visito a Europa e a América. Parece-me que as pessoas estão a aceitar as minhas histórias tal como são – caóticas muitas das vezes, perdendo a lógica em variados momentos, e nas quais a composição da realidade é rearranjada. Ao invés de analisarem o caos de que são compostas as minhas histórias, parecem ter começado a conceber um novo interesse na tarefa de descobrir como se encaixarem nelas.

Em contraste, a maioria dos leitores em países asiáticos nunca sentiram necessidade da catalogação de teorias literárias quando liam as minhas obras. A maioria dos asiáticos que decidiram ler os meus livros, aparentemente aceitaram as histórias que escrevi como relativamente “naturais” desse ponto de vista exterior. Primeiro veio a aceitação, e depois (se necessário) vem a análise. Na maioria dos casos no ocidente, apesar de tudo, com alguma variação, a análise lógica chegou antes da aceitação. Tais diferenças entre o Ocidente e o Oriente, no entanto, parecem estar a desaparecer no decorrer dos anos, devido à influência que vão dando um ao outro.

Se eu tivesse de nomear um separador no processo pelo qual o mundo tem estado a passar nos últimos anos, chamá-lo-ia de “realinhamento”. Depois do fim da Guerra Fria começou um realinhamento a nível político e económico. Pouco há para ser dito acerca do realinhamento da área das tecnologias de informação, com o incrível e global estabelecimento de novos sistemas. Vivendo no centro destes processos, obviamente, seria impossível à literatura tomar uma posição em tal realinhamento e impedir tal mudança no sistema.

Uma das dificuldade que surgem neste processo de realinhamento é a perda – ainda que apenas temporária – de eixos coordenados através dos quais se formam normas de evolução. Estes eixos estiveram cá até agora, funcionando como bases sustentáveis na medição do valor das coisas. Estavam sentados na ponta da mesa como os “chefes de família” dos valores, decidindo o que era aceitável e o que não era. Agora acordamos e descobrimos que não apenas o chefe da mesa como a própria mesa desapareceu. À nossa volta, parece que as coisas foram – ou estão a ser – engolidas pelo caos.

Quando eu oiço a palavra “caos”, automaticamente me lembro das imagens do 11 de Setembro – aquelas cenas chocantes que foram mostradas um milhão de vezes na televisão: os dois aviões chocando contra as paredes de vidro das Torres Gémeas, as torres desabando sem avisar, imagens que continuam a ser inacreditáveis mesmo depois de um milhão e uma visualizações. O enredo que foi sucedido com miraculosa perfeição – uma perfeição que atingiu um nível próximo do surreal. Se o puder dizer sem ter medo de ser mal entendido, as cenas até pareciam ser qualquer coisa feita a computador para um filme de Hollywood.

Frequentemente imaginamos como teria sido se o 11 de Setembro nunca tivesse ocorrido – ou pelo menos se o plano não tivesse sucedido de forma tão perfeita. Se assim fosse, o mundo teria sido muito diferente do que é hoje. A América podia ter um presidente diferente (possibilidade muito grande), e a guerra no Iraque e no Afeganistão poderiam nunca ter ocorrido (possibilidade ainda maior).

Vamos chamar ao mundo que verdadeiramente temos agora a Realidade A, e ao mundo que poderíamos ter tido se o 11 de Setembro nunca tivesse acontecido a Realidade B. Não podemos deixar de reparar que o mundo da Realidade B parece mais realístico e racional do que o mundo da Realidade A. Para pôr o caso em termos diferentes, estamos a viver num mundo que tem um nível ainda menor de realidade do que o mundo irreal. O que podemos chamar a isto senão “caos”?

Que tipo de significado pode ter a ficção numa época como esta? Que propósitos pode ela servir? Numa altura em que a realidade é insuficientemente real, quanta realidade pode uma história ficcional ter?

Sem dúvida, este é o problema que nós escritores agora enfrentamos, a questão que nos foi dada. No momento em que as nossas mentes atravessaram o princípio do novo século, também nós atravessámos o início de uma nova realidade. Não tivemos escolha senão em atravessar, e, como podemos confirmar, as nossas histórias são obrigadas a mudar a sua estrutura. Os romances e as histórias que escrevemos tornar-se-ão sem dúvida cada vez mais diferentes em carácter e sentimento das que existiam antes, tal como a ficção do século XX é nítida e claramente diferenciada da do século XIX.

O objectivo principal de uma história não é julgar o que é certo e o que é errado, o que é bom e o que é mau. Mais importante para nós é determinar se, dentro de nós, os elementos variáveis e os valores tradicionais estão a mover-se em frente em harmonia uns com os outros, para determinar se as nossas histórias individuais e as histórias comuns aos outros estão juntas neste caminho.

Por outras palavras, o papel de uma história é manter o carácter de ponte espiritual que foi construída entre o passado e o futuro. Novas normas e valores emergem naturalmente deste processo. Para isso acontecer, temos primeiro de respirar profundamente o ar da realidade, o ar das coisas tal como elas são, e temos de aceitar sem preconceito a maneira como as histórias estão a mudar dentro de nós. Temos de cunhar novas palavras em consonância com o respirar dessa mudança.

Nesse sentido, ao mesmo tempo que a ficção (histórias) ultrapassa um severo teste, surge uma oportunidade sem precedentes. Claro que à ficção sempre foi delegada uma responsabilidade e questões com que lidar em cada época, mas sem dúvida que a responsabilidade e as questões são especialmente importantes agora. As histórias têm a função que só elas podem tomar, e que é “tornar tudo numa história”. Transformar as coisas e os acontecimentos à nossa volta na metáfora do formato das histórias, e sugerir a verdadeira natureza das situações no dinamismo dessa substituição: essa é a função mais importante da ficção.

No meu último romance, 1Q84, eu mostro não o futuro próximo como George Orwell, mas o contrário – o passado próximo – de 1984. E se tivesse havido um 1984 diferente, não o 1984 original que conhecemos, mas outro, um 1984 transformado? E se fôssemos subitamente atirados para esse mundo? Isso seria, claro, um passo na direcção de uma nova realidade.
No intervalo entre a Realidade A e a Realidade B, na inversão das realidades, quando longe podemos nós preservar os nossos valores adquiridos e, ao mesmo tempo, a que novos valores poderíamos nós aceitar e seguir com eles? Este é um dos temas do trabalho. Passei três anos a escrever esta história, tempo através do qual passei este mundo hipotético por mim próprio enquanto simulação. O caos ainda lá está – em medidas estrondosas.

Mas depois de uma boa dose de tentativa e erro, tenho a forte sensação que finalmente estou a conseguir metê-lo nos termos de uma história. Talvez a solução comece por lentamente aceitar o caos não como algo que “Não devia estar aqui”, rejeitado fundamentalmente logo de princípio, mas como algo que “é realmente um facto”.

Talvez seja demasiado optimístico. Mas como contador de histórias, como um esperança piloto da mente e do espírito, não consigo deixar de pensar desta forma – que também o mundo, após uma boa quantidade de tentativa e erro, chegará a uma nova convicção que está a chegar, que o mundo irá descobrir algumas pistas que sugerem a solução, porque, finalmente, tanto o mundo como a história já passaram pelo começo de muitos séculos e por muitas metas para sobreviver até ao dia presente.


Data: November 29, 2010
Fonte: The New York Times
Por: Haruki Murakami
Em: http://www.nytimes.com/2010/12/02/opinion/global/02iht-GA06-Murakami.html?pagewanted=1&_r=2

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

O 5º Carneiro!

Eis que a Casa das Letras anunciou na sua página do Facebook que chegou às lojas mais uma reedição do livro «Em Busca do Carneiro Selvagem», de Haruki Murakami. A obra, na sua versão portuguesa, chega esta forma à sua 5ª edição.

De notar que é a primeira edição depois de Julho de 2007. O livro foi lançado em Portugal em Abril desse ano, e no espaço de três meses deu lugar a quatro edições - desde então para cá não tinha esgotado os seus exemplares. Tudo leva a indicar que isso aconteceu, e «Em Busca do Carneiro Selvagem» volta assim a marcar lugar com mais força nas lojas do país.

Um bom presente de Natal, assegura a equipa do blog. O livro é o terceiro escrito pelo autor japonês, na sequência da trilogia do Rato que o lançou enquanto escritor. No entanto, e devido ao impedimento de publicação das duas primeiras obras, «Em Busca do Carneiro Selvagem» acaba mesmo por ser a obra mais antiga de Murakami a que os leitores têm acesso com facilidade, e em português.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Crítica a «Underground - a Mentalidade de Tóquio e a Mentalidade Japonesa» (Tiago)

Um dos motivos que fazem de Haruki Murakami o meu autor preferido é o facto de partir para um livro seu sempre com a certeza de que uma maneira ou de outra me vai surpreender. Isso aconteceu com os sete trabalhos de ficção que li até agora dele, e também com o de não-ficção “Auto-Retrato do Escritor enquanto corredor de fundo”. Mesmo o seu primeiro, “Hear The Wind Sing”, que após ter terminado fiquei com uma sensação de que faltaria qualquer coisa, me tinha surpreendido pela atmosfera para onde me tinha puxado. Acontece que “Underground – O Atentado de Tóquio e a Mentalidade Japonesa” é uma obra composta de entrevistas feitas pelo autor às vítimas de um ataque de gás sarin no metropolitano da capital japonesa, e na segunda metade aos membros/ex-membros da seita que provocou o atentado.

Primeiro que tudo, e antes de iniciar a minha opinião, quero deixar uma nota muito positiva à editora Tinta-da-China, que edita este livro em Portugal. É a primeira obra de Murakami que leio fora do domínio da Casa das Letras, e adorei o conceito gráfico desta edição.

A primeira metade ainda nos envolve por algum tempo. Não digo que a segunda não deixe de ser agradável de ler, mas a primeira tem ainda um toque muito particular de Murakami, nomeadamente em dois capítulos seguidos que se encontram entre as páginas 121 à 140. Estas dezanove páginas são de todo o livro as mais marcantes; atingem um elevado nível de escrita e conferem-lhe uma grande emotividade. O segundo desses dois capítulos, particularmente, e apesar de não-ficção, está carregado das palavras e do génio do escritor japonês. São páginas de arrepiar e, no fim, aplaudir, ainda que só vamos a um terço do livro e falte ainda muito para terminar. Mas o que senti é que, se o livro terminasse ali, já não ficávamos mal servidos de todo. Foram talvez 20 das melhores páginas que li neste ano de 2010.

Que pena é, no entanto, que esse expoente não se tenha esticado mais. O livro é um retrato de pessoas, que falam de si próprias e das suas vidas. E sim, é espantoso o trabalho jornalístico feito por Murakami, é espantoso o painel de vidas a que de repente temos acesso, é interessante ver as dezenas de perspectivas diferentes acerca de um único acontecimento. E em relação à segunda metade, o interesse e a curiosidade mantêm-se em descobrir que, afinal, os membros da seita Aum são afinal pessoas normais, que podiam ser qualquer um de nós. Sem qualquer ligação ao atentado, muitos não queriam acreditar sequer que tinha sido a sua religião a provocar tal monstruosidade.

É, pois, ponto assente: o livro está original e muito bem concebido. Para um ensaio de não-ficção, composto por dezenas de entrevistas, e um retrato dos acontecimentos passados no dia 20 de Março de 1995 em Tóquio, está aqui uma obra de grande valor – e à qual tenho a certeza que o autor dispensou todos os seus esforços e profissionalismo.

Não posso, no entanto, dizer que fiquei totalmente satisfeito com esta leitura. Porque não fiquei. Com os autores muito bons, há sempre o risco de haver um livro que esteja um pouco abaixo daquilo que nos habituou, e depois desilude-nos. Acho muito boa a capacidade que ele tem de se dividir entre os estilos narrativos e os de investigação e ensaio, mas a verdade é que “Underground” não me deixou agarrado, por exemplo. Enquanto um todo, é interessante, mas ao longo da leitura foram poucos os momentos em que senti “não posso parar, vamos lá ver como é que isto continua”. É um estudo, eu diria quase um retrato social. Fica-se a aprender muito sobre o Japão e o modo de vida das pessoas. E sim, isso foi muito bom e saio mais rico desta leitura. Mas faltou um qualquer tempero que esperaria vindo de Murakami. Excepto naquelas vinte páginas. Aquelas vinte páginas…

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Mais sobre a curta "O Segundo Assalto à Padaria"


Embora na actualidades internacional estejam a dominar os artigos sobre o filme Norwegian Wood, a estrear nas salas de cinema japonesas a11 de Dezembro, e ainda sem data marcada para Portugal - existem também notícias sobre a curta-metragem que anda a ser exibida em festivais norte-americanos, baseada no conto de Haruki Murakami "O Segundo Assalto à Padaria".


Deixo-vos com algumas imagens que vão sendo divulgadas na internet, assim como um excerto de trinta segundos disponível para visualização. Em inglês, sem legendas.


TheSecondBakeryAttack from Morelia Film Fest on Vimeo.


quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

[Crónicas da Tradutora] - 1Q84

O MURAKAMI PT inicia a partir de hoje uma parceria regular com a tradutora portuguesa do autor Haruki Murakami - Maria João Lourenço - que puderam conhecer melhor a partir da entrevista exclusiva que publicámos no blog ao longo das últimas semanas. Pelo nosso lado, achámos a conversa tão interessante, ficou tanta coisa por dizer e divagar, que nos custava um pouco que este contacto tão produtivo com a tradutora se ficasse por aqui. Decidimos, pois, apresentar uma proposta à Maria João, que foi atendida com entusiasmo também pela sua parte: no primeiro dia de cada mês será publicada no blog uma crónica escrita pela tradutora, com o seu ponto de vista, sobre um determinado subtema englobado no grande tema que é Murakami. De uma coisa estamos certos: com a multiplicidade de obras e discussões existentes, dificilmente faltará assunto; e: a opinião e a presença de Maria João Lourenço, a tradutora das suas obras para a nossa língua, será uma mais valia a todos os leitores portugueses já agarrados pelas narrativas do japonês. As crónicas da tradutora começam já este mês de Dezembro de 2010, com uma crónica dedicada a «1Q84», o mais recente livro de Murakami publicado no Japão. Será traduzido para português durante os próximos meses, e sairá ao mesmo tempo cá que a tradução inglesa na América. Maria João Lourenço deixa-nos com uma boa prespectiva do que podemos esperar deste romance...
________________________


1Q84. O primeiro capítulo do Livro 1 (Abril a Junho) tem nome de mulher. Aomame. Traduzido à letra,«ervilha verde» (Ao-mame), se querem mesmo saber os mais curiosos. «Se eu não tivesse vindo ao mundo com este nome», interrogava-se ela muitas vezes, «quem sabe?, talvez a minha vida tivesse conhecido um rumo diferente...». Não é caso para terem pena, que ainda a procissão vai no adro, e nós, leitores privilegiados e fiéis de Murakami, seguimos viagem num táxi na companhia desta ninja moderna, nascida em 1954, que identifica – aos primeiros acordes – a Sinfonietta de Janáček, difundida por uma estação de música de clássica. O cenário tem o seu quê de estranho, mas, acreditem, ainda viram muito pouco, e não vou sequer fazer a descrição do condutor do táxi, uma vez que no segundo capítulo, chegados à página 26 da edição alemã (belo exemplar da Dumont, verde sobre prata, com MURAKAMI estampado a toda a largura da lombada), travamos conhecimento com Tengo, personagem masculina.

Prende-se com o tempo, a primeira recordação do jovem. Lembra-se de ver a mãe a dar o peito a um homem, que não era o pai. Intuitivamente, soube que era ele que estava deitado no berço, bebé de meses. Pensa em si na terceirapesso. Já adulto, Tengo conta com um parceiro que trabalha no mundo editorial, de seu nome Komatsu,e que tenta convencê-lo a editar um romance escrito por outra pessoa (A Boneca Insuflável), com o qual poderia candidatar-se ao mais importante prémio literário japonês. São ambos jovens e um tanto inconscientes, percebe-se, apesar de terem consciência política e de terem tomado parte no movimento estudantil quando estudavam literatura na Universidade de Tóquio (protestaram contra os acordos de segurança entre o Japão e os Estados Unidos). Tal como acontecia em Kafka à Beira-Mar, também no romance 1Q84 encontramos uma estrutura paralela: a um capítulo centrado na figura de Aomame, sucede outro encabeçado por Tengo. A par da estrutura, o mundo paralelo é outra certeza. Se o 1984 de George Orwell é para aqui chamado, mais adiante se lerá.

Para começar, temos uma história de amor e morte, marcada pela violência, num mundo em que existem seitas religiosas, como aquela que marcou a história recente do Japão e que Murakami retratou em Underground – o Atentado de Tóquio e a Mentalidade Japonesa (Tinta-da-China) e, algures, o Povo Pequeno. Em última análise, um romance genuíno, com a assinatura de um escritor japonês que escreve sobre o seu país sem deixar de descrever a espécie humana. Mas estamos a adiantar-nos; mais vale esperar pela tradução inglesa a cargo de Jay Rubyn (ocupou-se dos dois primeiros livros) e Philip Gabriel (ficou com o Livro Três). O taxista que transporta Aomame, logo que o romance arranca, bem avisa: «Não se deixem enganar pelas aparências. A realidade é só uma.» Os leitores portugueses terão de esperar até meados do ano que vem para lerem a tradução. Pela minha parte, mal posso esperar para começar a traduzir.

Maria João Lourenço