segunda-feira, 6 de setembro de 2010

[Crítica] Afterdark - Os Passageiros da Noite (Tiago)


Há uns meses passou-me pela cabeça uma ideia meio tresloucada. Quem me conhece sabe que eu não sou pessoa de ler rápido, demoro um tempo considerável por página. Daí que por vezes demore mais tempo do que gostaria a ler um livro. Há no entanto um autor chamado Haruki Murakami, japonês, que me hipnotiza com as suas palavras e me deixa agarrado às suas obras. Quando na Feira do Livro de Lisboa deste ano comprei o “After Dark – Os Passageiros da Noite”, decidi quase de imediato que, quando o lesse, seria de seguida, numa só noite. Pareceu-me uma decisão natural – como todo o enredo era também todo ele passado nas horas de lua, porque não ler em tempo real? A ideia aliciou-me.

Foi ontem a noite. Fui beber água, acender a luz do quarto, abrir a janela e fechar os estores, encostar a porta do quarto, abrir o armário, pegar no livro, deitar-me na cama, encará-lo de frente, olhar para ele numa antevisão do que o serão me prometia. Eram 10 horas da noite e vinte minutos. As minhas previsões feitas antecipadamente, tendo em conta as 220 páginas, diziam que demoraria entre 5 a 6 horas. O meu coração batia acelerado só na perspectiva da aventura em que ia entrar. Por fim abri na primeira página do primeiro capítulo.

«Diante de nós desenham-se os contornos da cidade.»; sim, vejo-os, todos os altos arranha-céus, os limites, as ruas, as esquadrias e as assimetrias, tudo o que uma cidade pode oferecer ao nível da forma. Vejo-os diante de mim como se lá estivesse. Bastou uma frase para ser puxado – com Murakami é sempre assim, visto que parto à partida com a certeza de que aquele é o meu ambiente, e não precisarei de tempo para me ambientar. Atiro-me de cabeça.

As primeiras duas páginas são mais do que imagens – é todo um conforto que sinto de me imaginar lá, no meio de toda a vivacidade da noite japonesa, o movimento em Tóquio, a azáfama das ruas; tudo isso são presenças – células – circulando pelas ruas – artérias. Toda a cidade é um corpo. A metáfora de Murakami conquista-me facilmente, porque consigo imaginar que o é de facto. Cada cidade é um corpo composto de inúmeras células, sempre em metabolismo, sempre trazendo algo de novo umas às outras.

Há qualquer coisa de muito cativante no princípio desta história. Em poucos parágrafos Murakami dá-nos a conhecer o cenário deste livro, e todo o mecanismo vivo que o vai alimentar. Na noite de Tóquio existe toda uma quantidade de pessoas diferentes, que estão ali com objectivos diferentes, cada um vivendo para a sua própria noite – a noite particular de cada um deles. Mas que, no fundo, está sempre em contacto com as dos outros. A minha história de vida que se cruza com outra história de vida quando sou interpelado na rua. Cruzamentos e ligações que se darão debaixo do néon luminoso, e os ecrãs que vão diminuindo o seu brilho e som à medida que se aproxima a meia-noite.

Ao invés de sentir que o dia acabou, sinto que é a noite que está a começar. A minha e a de todas aquelas personagens que as poucos me vão sendo apresentadas, e as quais acompanho de tão perto sem que possa interferir na acção – é Murakami que leva aqui e ali, apontando para os sítios onde devo olhar. A certa altura entro na dúvida se estarei a ler um livro, ou a ver um filme. A linguagem do autor neste livro, em particular, é muito cinematográfica; em certos pontos parece-se extraordinariamente com um guião. Uma nova faceta da sua escrita que, após sete livros, ainda não conhecia! Tive de esperar pelo oitavo (pergunto-me o que ainda virá nos próximos por ler…).

A primeira metade do livro é tudo menos silenciosa. Temos música de fundo em muitos dos capítulos, ou que vai tocando nos bares, ou nos restaurantes, ou nas lojas, ou que as personagens simplesmente cantarolam. Há muito jazz, referindo logo à partida a música que provavelmente também serve de mote para o título do livro: “Five Spot After Dark”. Mas não só! Blues, música clássica, e mesmo música pop japonesa… temos de todos os tipos de sonoridade desta obra. Ah, e é claro, também temos a música das palavras e dos diálogos. E a do silêncio.

O fim, igual a tantos outros de Murakami, completa-me. Os finais abertos deste autor conquistam-me pela magia que transmitem – nada está terminado, apenas vamos deixar de contar por aqui. Existem tantas histórias por desenrolar, e podemos calcular o que aconteceria a seguir. Mas a noite tem fim. E ao nascer do sol as pessoas levantam-se e começam um novo dia. Para quem viveu intensamente a noite, neste drama sinistro, melodramático, tão pessoal e comovente, é agora altura de descansar – sozinho ou junto de quem se mais gosta. Com a esperança de que as últimas seis horas tenham mudado positivamente a vida a uns, e a tristeza de que para outros tenha sido tão profundamente cruel. E ainda há aqueles para quem a noite não passou disso – mais uma igual a tantas.

No fundo, este livro continua com o leitor muito antes de ter terminado. No fundo não conseguimos deixar de pensar na forma como a vida é tão sensível às mudanças exteriores, que cruzarmo-nos com uma dada pessoa pode mudar uma perspectiva de vida. Passageiro da noite como fui, às três da manhã pousei o livro na minha mesa de cabeceira, depois de ler a última página, fechei a janela, apaguei a luz, deitei-me e adormeci. Sabendo que a manhã seguinte seria um novo dia… mas que “After Dark” ia continuar comigo por muito, muito tempo.

11 comentários:

PKB disse...

Eu adorei esse livro de Murakami. Aliás, ele tem também esse efeito em mim: hipnotiza-me completamente. O primeiro livro que li dele foi "A sul da fronteira, a oeste do sol". Comprei-o precisamente porque li as primeiras linhas e cativou-me de imediato. Li-o num ápice (parte dele enquanto esperava pelo comboio que me traria de regresso ao Algarve). Obrigada por este revisitar de um livro que também me cativou desde as primeiras sílabas.

Tiago Mendes disse...

Olá, PKB! Por acaso as minhas experiências de leitura de Murakami nunca aconteceram em meios de transporte, ou à espera destes (talvez porque os uso pouco). Mas tanta gente o lê desta forma que terei de experimentar um dia... em viagem também deve ter outra força. :) Digo eu!

Obrigado pelas palavras deixadas!

Maria Felgueiras disse...

Olá!
Este ainda não li. Acabei há dias "Kafka à Beira-ma" mas devo confessar que dos 3 lidos até à data o meu preferido foi "Hard-boiled wonderland and the End of the World". Achei-o absolutamente genial.
Gostei muito desta tua crítica. Muito inspiradora! Espero ler, então, o "After Dark" muito em breve.

Tiago Mendes disse...

Olá, velvetsatine! Não li ainda nenhum dos dois livros que referiste - o segundo porque aguardo pacientemente pela tradução! Em relacção ao After Dark, e não sabendo a disponibilidade das pessoas se aventurarem de tal maneira, aqui deixo o conselho de fazeres a leitura em tempo real como eu, porque a sensação é muito recompensante! (Só convém é ser numa sexta-feira ou sábado, para se descansar convenientemente no dia seguinte!)

Obrigado pelas palavras :)

Root ky disse...

Olá a todos! Adorei ler "Kafka à Beira-mar", "After Dark" e "Em busca do carneiro selvagem". Gostaria muito de ler "Hard-boiled wonderland and the End of the World", pelo que sei deve ser fantástico! "After Dark" pode ter poucas páginas, quando comparado com todos os outros livros de Murakami, mas com todo aquele enredo, deixa qualquer pessoa colado ao livro. Boas leituras!

Tiago Mendes disse...

Olá, Root ky! :)

Dos 3 que referiste como lidos, já li os dois últimos, e foram de todo o meu agrado. Quando ao 'Hard-Boiled', a nós aqui no blog quer-nos parecer que será o próximo a ser publicado em português... veja porquê neste nosso post: http://murakami-pt.blogspot.com/2010/07/o-proximo-ser-publicado-em-portugal.html

Obrigado pelas palavras deixadas!

Pereira disse...

Continua a ser o meu favorito do Murakami. Parabéns pela critica, está interessante =]

Tiago Mendes disse...

Obrigado, Pereira, pelas palavras e pela visita! :)

Pereira disse...

Não tens de quê =]
No meu blogue também já tivemos uns posts dedicados ao Murakami ( recentemente até postamos o conto " On seeing the 100% perfect girl one beautiful april morning" ) !

Tiago Mendes disse...

Então vou lá espreitar agora mesmo! ;)

Pereira disse...

Personagens favoritas a Mari,o Takahashi e a empregada de limpeza em fuga que agora não me lembro se é a Komugi ou Korogi...

Também gostei bastante da Kaoru, é uma personagem algo diferente das personagens normais do Murakami =]