segunda-feira, 22 de novembro de 2010

[Pt 3/4] Entrevista Exclusiva à Tradutora!


Parte 3

Do lado direito do Tiago, num banco comprido que acompanha toda a parede, um saco grande carregado de livros. São uns quinze que estão ali dentro, no mínimo. Vão desde a edição japonesa de "1Q84", a um livro autografado pelo próprio Murakami com dedicatória para a tradutora (e que deixou os moderadores do Murakami PT de boca aberta), a traduções estrangeiras de livros do autor. Ao longo da conversa, muitos deles vão sendo referidos, e é uma constante ao longo da hora e meia o remexer no saco, procurando este ou aquele livro. Ao escutarmos a visão de Maria João Lourenço sobre o autor japonês que traduz, deixamo-nos embrenhar nesse fascínio típico - quase o mesmo de quem está a ler um livro dele.


MPT – Falou-se há pouco da rotina de Murakami. E a Maria João, tem alguma rotina em termos de tradução? Obriga-se a escrever um determinado número de páginas por dia?

MJL - Estou num período de transição, mas agora vou voltar àquilo que eu gosto de fazer. Vou voltar a traduzir como gostava. Eu sou como ele, uma vez mais: gosto de traduzir cedo, de manhã, 6:30h. X número de páginas por dia. Tentar, pelo menos. Não digo que nós consigamos traduzir as tais cinco páginas porque as cinco páginas nunca são cinco páginas iguais. Uma página de diálogos é perfeitamente diferente de uma página de texto denso. No “Kafka à Beira-mar” e na “Crónica” essa experiência foi avassaladora! Cheguei a traduzir meia página num dia! Há cenas no fundo do poço que são uma descida ao inferno em termos de tradução! Quando se está a traduzir textos desta natureza a pessoa tem de ter cuidado com as palavras. Tem que se documentar, tudo tem de ser medido, as palavras têm de ser rigorosas. Enquanto em termos de diálogos nos podemos permitir uma certa liberdade criativa, com a ajuda do mestre Carver, por exemplo. As descrições históricas da “Crónica do Pássaro de Corda”, por exemplo, que é uma verdadeira crónica, que é um livro de história, por isso é que se chama assim. É um livro espantoso em termos da história do Japão. E que diz muito sobre aquilo que o Haruki pensa em relação à história recente do país. Eu faço um plano; nem sempre bate certo mas vou voltar agora ao meu método de trabalho com este novo livro, o “1Q84”, que é pôr o despertador cedo e começar a trabalhar cedo como ele faz quando está a trabalhar. É isso e o medo que ele tem. Eu acho muito engraçada essa história, este apontamento que se não fosse tétrico era anedótico. Quando ele está a escrever um romance e está quase a chegar ao fim ele pensa sempre: “Eu só espero não morrer antes, quero acabar de escrever isto”. E eu às vezes quando estou a traduzir também penso isso. Não é que a pessoa pense na morte, mas passa-me também pela cabeça “quero acabar de traduzir o que estou a traduzir”. Pensar nisso. Não morrer antes de…

MPT − No auto-retrato encontrou algum espírito mobilizador por parte do autor? Ou seja, a capacidade de orientar as pessoas num certo sentido, de as convencer através das suas palavras… por exemplo a correr. Tem o poder de orientar massas num certo sentido? Ou não o pretende sequer?

MJL − Eu acho que ele quando escreveu esse livro, provavelmente tinha isso em mente. Não sei se ele com esse livro consegue isso, mas consegue isso com os seus livros. (risos) Essa capacidade mobilizadora, acho que ele tem. Parece-me que ele é uma pessoa muito disciplinada e que talvez seja um pouco obstinado, também. Murakami sabe muito bem o que quer, tem uma ideia muito clara do que quer fazer em termos da sua obra. Quando a carreira de escritor começou, ele foi um bocadinho surpreendido quando o primeiro livro teve o êxito que teve. Sobretudo depois do “Norwegian Wood” ter vendido o que vendeu, ficou um bocadinho espantado. E foi obrigado a parar para pensar. Daí que ele tenha tido necessidade de sair do Japão para se reencontrar. Porque não estava à espera de se transformar naquele fenómeno de massas que veio a ser e que ainda é, que é hoje em dia, de resto, mais do que nunca. Percebeu que tinha de pensar muito bem qual era o papel dele, porque as pessoas olhavam para ele como um “role model”. Portanto ele quando escreve um livro dessa natureza é obviamente com esse fito. Se ele consegue… isso eu não posso dizer. Mas para mim, mais importante do que tudo isso, é de facto o que Haruki Murakami faz com a escrita dele.

MPT – Detecta em Murakami um apurado sentido de humor?

MJL − Murakami é uma pessoa séria mas tem um sentido de humor notável, que é uma coisa que eu acho que às vezes não é devidamente valorizada. Porque ele é extremamente divertido. E ele diz uma coisa numa das suas entrevistas: “Eu gostava que as pessoas se divertissem com aquilo que eu escrevo.” Quando quer ter graça, obviamente. “Eu não me importo nada que as pessoas se desatem a rir no meio dos livros”. E a mim acontece-me imensas vezes rir-me e desatar a rir-me quando o estou a traduzir. Portanto eu acredito que as pessoas se riem, se desatam ao rir quando lêem coisas assim; tal como ficam arrepiadas com a cena do Johnny Walker. Os livros dele despertam emoções fortes, mas fazem pensar também. Têm essa dupla componente. E esse lado sério é importante para ele. Eu achei-lhe graça quando foi a entrevista que lhe fiz para o jornal “i”. Fiz-lhe assim umas perguntas um bocadinho mais sérias. E no texto que ele me escreveu, fora das entrevistas, quando chegou ao fim, uma das frases que ele me dizia em inglês era: “Well, Maria João, I’m going to leave my desk now”. E agora já chega, Maria João, pronto, já estou farto, já chega, já não quero responder a mais coisas. Portanto, ele no fundo acha que a obra fala por ele. E é na obra que ele se afirma.

MPT – Outro elemento que também encontramos na escrita dele é o erotismo. Ele já falou disso em algumas entrevistas, mas qual é a sua opinião acerca de essa componente estar presente nas obras? Qual a sua importância? Porque, por exemplo, aquele penúltimo capítulo do ‘A Sul da Fronteira, a Oeste do Sol’ cai ali como uma bomba… fica a destoar um bocado do resto do tom…

MJL – Eu se pensar nas cenas de sexo nos romances dele, eu diria que é quase sempre uma coisa serôdia, calma. Ou seja nunca levantam sequer grandes problemas ao nível de tradução, é sempre uma coisa que se passa assim… quase como quem não quer a coisa, precisamente. Aquilo acontece: os homens vivem com as mulheres, fazem sexo, viram-se para o outro lado… e não me oferece grandes problemas. Depois de vez em quando há assim umas cenas estranhas. O ‘A Sul da Fronteira, a Oeste do Sol’ é um livro bastante diferente. Essa cena é quase de subjugação. Eu diria que o Haruki Murakami entende bem o universo feminino. Esse livro, é muito feminino, quase… o meu japonês entende bem a alma feminina. Embora ele diga às vezes que não e que teve dificuldade em penetrar na mente da mulher, eu acho que ele o faz sem dificuldade. Da mesma forma como penetra na mente de um rapaz de 19 ou de 20 anos, consegue penetrar naquele mundo. Não é que ele faça pesquisa. Ele consegue descrever bem as coisas. Essa cena de sexo é como se fosse um triunfo da mulher sobre o homem, quase. Acho que a cena é a compreensão da mulher, mais nada. Mas há até quem diga que essa mulher não existe!

MPT – Já tínhamos abordado um bocadinho esta questão, do Murakami ser um escritor político, de alguma forma. O surrealismo que ele usa tem algum propósito ou é tão inocente como parece? Ou seja, são metáforas com algum sentido político?

MJL – Bem, as metáforas têm sempre um sentido, não é?

MPT – Sim. Mas… será que estão de alguma maneira… não sei explicar muito bem…

MJL – Não?

MPT – Vamos lá a ver como posso explicar… A minha professora de história tinha visto o “Em Busca do Carneiro Selvagem” em cima da minha mesa. E eu expliquei-lhe mais ou menos como é que era a história, que era um bocado surreal: ele ia em busca de um carneiro que ia mudar o mundo. E ela colocou essa questão: ‘Mas isso tem algum sentido político?’, e ficou-me a pergunta na cabeça. Será que aquela busca tem alguma correspondência com questões práticas?

MJL – ‘Em Busca do Carneiro Selvagem’ foi um livro muito importante para ele. Foi o livro que o permitiu afirmar-se como escritor… por alguma coisa é que ele depois não quer que se traduzam os outros dois primeiros livros dele. É um livro em que ele começa a interrogar-se sobre si, sobre o Japão. Em que ele mergulha pela primeira vez nas suas próprias raízes. A «Trilogia do Rato» é, no fundo, um retrato interessante do Japão. E como é que nós havíamos de dizer isto para as pessoas que não vão ler nunca… eu lembro-me de ter lido que havia quem questionasse se o J não era o Jesus. É a tal coisa, as metáforas e estas interrogações depois podem levar-nos muito longe. O livro [Em Busca do Carneiro Selvagem] recebeu um prémio importante, e pôs a Academia Japonesa a repensar a posição de Murakami no mundo das letras. Não foi um livro fácil de traduzir. O “Dança, Dança, Dança” já é um bocadinho diferente. Mas é engraçado, porque o Murakami gosta muito do ‘Dança, Dança, Dança’ apesar de não ter o prestígio do ‘Em Busca do Carneiro Selvagem’. Ele diz que “foi um dos livros que tive absoluta necessidade de escrever, quase como se retratasse um processo de cura, depois de “Norwegian Wood”. Portanto, depois de ter escrito um livro que era mais autobiográfico porque falava daquela fase da juventude dele, e da fase das lutas estudantis, e aquele período todo da contracultura, diz ele que “sem margem de dúvidas gostei mais de escrever ‘Dança, Dança, Dança’ do que qualquer outro romance”. Mas isto em relação aos anteriores, dos outros não diz nada. É a primeira vez, diz ele, em que o narrador – o tal “boku” – fala de uma forma assumida, coisa que a partir daí já é muito constante nos romances dele, do estado de tristeza.

MPT – Porque é que acha que ele decidiu não editar os dois primeiros da trilogia fora do Japão? Perfeccionismo, ou outro motivo?

MJL – Eu acho que é do ponto de vista estilístico, ele não gosta tanto das obras. Penso que é por essa razão. Acho que Murakami pensa que se trata de obras imperfeitas. Eu leio-os e acho que são obras tão imperfeitas quanto obras imperfeitas de outros escritores que têm as obras editadas. Francamente, é isso…

MPT – Eu ao ler, por exemplo, do segundo gostei bastante. O primeiro é mais estranho, mas…

MJL – É mais estranho, concordo. Mas é a tal coisa, como nós lemos hoje em dia obras de outros escritores, e depois dizemos assim “este livro não é tão bom mas foi aquele livro que ele escreveu naquela altura”. Os livros são escritos num determinado tempo. E ficam ali, portanto, nós não estamos a fazer juízos de valor… além de que um escritor não está sempre a escrever melhor! Um escritor escreve, depois volta atrás. Há bocado eu estava a referir o caso do Lobo Antunes: eu gostei muito dos primeiros livros do Lobo Antunes, depois tive uma fase em que deixei de o ler, por não o conseguir. E agora acho que o António Lobo Antunes está a reaproximar-se dos leitores… pelo menos da leitora que gostava dele que eu era. E em relação ao Murakami acontece-me o mesmo, há livros dele a que eu não acho tanta graça. Os escritores não escrevem todos obras perfeitas, as obras são imperfeitas. Eu adoro o Ian McEwan e não gosto dos livros todos dele por igual. Eu acho que ele considera livros imperfeitos, e não quer… nós temo-los, pelos vistos, somos uns felizardos. (risos) Já tentei [pedir autorização para os publicar em Portugal], já tentei, mas…

MPT – Estivemos “a investigar” e, além desses dois, ainda há mais duas obras existentes em Inglês não traduzidas em Portugal. O “Hard-Boiled Wonderland and the End of the World”, e o ‘After the Quake”. Já leu estes dois?

MJL – Ainda há mais um, o ‘Birthday Stories’, que não é dele, só tem um conto dele, já traduzido por mim e publicado na colectânea “A Rapariga Que Inventou Um Sonho”, mas que reúne contos de outros escritores. Já li essas duas obras. Eu estava a traduzir o ‘Hard-Boiled Wonderland’…

MPT – Como é que foi a experiência de tradução?

MJL – Eu estou a traduzir… mas vou parar para colocar o “1Q84” à frente. O “Hard-Boiled” é um romance de fôlego, uma obra importantíssima na carreira dele. Tem um tom um bocadinho mais de ficção científica. Dois níveis narrativos paralelos. Duas histórias com um narrador, um mesmo narrador. Uma das histórias tem um tom mais policial. Ele foi tradutor de Raymond Chandler e sempre gostou muito de policiais; por outro lado também gosta muito de ficção científica. Portanto, há um lado que é mais policial, e há outro lado que tem mais que ver com a escrita da ficção científica, aquela pura e dura dos romances do Philip K. Dick. Portanto, são dois universos paralelos. Um dos narradores é um homem mais sonhador, que interpreta sonhos. O outro é… reencontramos a nossa velha figura do engenheiro informático, um bocadinho mais pérfido (risos), e está ao serviço do sistema, uma corporação. Não é fácil de traduzir… tem simbologias mil. Ele que diz sempre que os símbolos não existem! Murakami tem esta faceta de negar certas coisas. Diz sempre “Ah, os símbolos não existem, isto são…”. É aquela história do vulcão no “Segundo Ataque à Padaria”, que é uma história que eu adoro! Ele diz sempre “Um vulcão, qual é o problema? Um vulcão, uma pessoa tem fome, eu vejo um vulcão! Vocês não vêem um vulcão? Não, não… não é um símbolo!”. (risos) Mas eu acho essa história magistral; assim como o “Sono”, que é outro conto de “O Elefante Evapora-se”. É uma história que eu acho muito bem escrita. Os símbolos existem. Este romance está pejado de simbologia. Mas são duas histórias muito interessantes que têm que ver com o mundo moderno, e com os problemas que se deparam ao homem no mundo moderno. Já o li, mas ainda só vou no princípio da tradução. Agora vou ter que parar, mas posso dizer-vos que tem momentos riquíssimos. Tem um vago tom de “thriller”, ou seja, tem perseguições, tem “maus da fita”, tem qualquer coisa de “Kafka à Beira Mar”, também.

MPT – Falando no “Kafka”, pode-nos falar um pouco acerca dessa obra de Murakami, uma das mais vendidas do autor em Portugal?

MJL - Eu acho que o “Kafka” conseguiu tocar as pessoas mais novas e para mim foi espantoso. O “Kafka” recebeu o ano passado o prémio San Clemente, que é todos os anos atribuído pelos jovens do Instituto Rosalía de Castro, em Espanha, na Catalunha. Jovens entre os 16 e os 18 anos! Trata-se de um prémio escolhido pelos jovens daquela idade que é atribuído a um romance, e a um escritor. É um prémio presencial, portanto, o escritor tem de vir receber. Ele vem recebê-lo! Passou dois dias a passear, ali pelas ruas de Espanha, a comer polvo, e a dar entrevistas! Achei espantoso… depois responde às perguntas dos jovens todos! Isto é o tipo de prémios que ele gosta de receber. Foi o mesmo ano em que recebeu também o tal prémio de Jerusalém. Mas tenho a certeza que se lhe perguntassem, para ele [o San Clemente] era o prémio mais importante. Porque aí, ele sente-se recompensado. Vê que o livro chega a uma parte do público onde ele quer chegar. Ele deve-se ter sentido nas suas sete quintas, em Espanha, onde nunca tinha estado. Murakami gosta da Europa. Ele já viveu na Grécia, já viveu em Roma. E responder às perguntas daquela multidão de jovens, que só queriam ter ali o Murakami para lhe colocar uma série de questões… Umas mais fáceis, umas mais difíceis, mas todos tinham lido o livro, e tinham achado o livro uma coisa fantástica. Por isso, ele sentiu-se naturalemente compensadíssimo. E ele tão perto, e nós sem saber disso! Só soube quando li no jornal. O “Kafka” cá vendeu imenso. Foi de facto o livro que mais vendeu, e na Feira do Livro era ver as pessoas saírem com o “Kafka à Beira Mar” debaixo do braço. É impressionante comoaquele livro chega aos mais diversos públicos, sobretudo aos jovens. E não é apenas por ter uma personagem de 15 anos. É um romance com muitos romances lá dentro.

MPT – Qual é a previsão de lançamento do “1Q84” em Portugal?

MJL – Eu penso que será depois do Verão [de 2011]. Setembro, Outubro. A primeira parte. Vai ser publicado em três partes. Porque os livros ficam muito volumosos se num só volume, mais difíceis de carregar.

Continua...

3 comentários:

D disse...

Olá Tiago, ontem não tive tempo de deixar um comentário.
Deixo agora: esta entrevista está deliciosa, aguardo com ansiedade a quarta e última parte.
Sugiro apenas que seja incluída no texto a ligação para a entrevista de MJL a Murakami no i: http://www.ionline.pt/conteudo/35359-haruki-murakami-a-minha-vida-e-monotona . Assim todos podem acedê-la facilmente.

Efémera disse...

"Live my desk" ou leave my desk? Hm?

Tiago Mendes disse...

Obrigado pela correcção, Efémera! :)

Tiago