segunda-feira, 29 de novembro de 2010

[Pt 4/4] Entrevista Exclusiva à Tradutora!


Final

Após o desligar do gravador, a sensação que paira no ar é a de um sonho. Pelo menos da parte da equipa do blog. Olhamos para o relógio e confirmamos que a conversa durara tão mais do que imaginaramos - uma hora e quarenta e cinco minutos. Cada um acaba a sua bebida, e pedimos autorização para fotografar alguns dos livros que Maria João Lourenço trouxera para vermos. Tocamos num autógrafo de Haruki Murakami, e, mesmo que fosse só por isso, aquele dia já tinha sido diferente. Lá fora, um Campo Pequeno inundado de sol, numa temperatura amena de princípio de Outono. Tiramos as últimas fotografias, desta vez à tradutora. Despedimo-nos sorridentes - foi uma manhã bem passada e temos de repetir numa próxima vez. Ao entrar no metro no caminho de volta para casa, olhamos um para o outro (a Marta para o Tiago, o Tiago para a Marta), e fica a pergunta no ar - se terá sido realidade, ou se caímos num romance do japonês. Tendemos para a segunda hipótese...


MPT - Há pouco estávamos a falar de catalogarem Murakami como pertencente de uma cultura pop. Acha que isso é alguma espécie de obstáculo ao Prémio Nobel da Literatura? É por isso que ele depois acaba por não ganhar?

MJL – Sinceramente, eu acho que o rótulo não corresponde à verdade. Mas acho que pode ser um obstáculo, sim (risos). Na mente dos senhores que escolhem o Prémio Nobel. O Prémio Nobel da Literatura e o Prémio da Paz são sempre os Prémios Nobel mais difíceis de nós conseguirmos perceber a lógica deles. O senhor da Medicina fez isto, o senhor do ramo da Química … Estes são mais subjectivos, e por vezes esta subjectividade escapa-nos um pouco. Nos últimos anos, houve alguns que eu nunca tinha lido e continuo sem ler, muito embora perceba a notoriedade e a importância da obra deles, é evidente. Mas reconheço que são nomes desconhecidos, que continuam a ser-me desconhecidos. O Orhan Pamuk, por exemplo, para mim, foi um bom Prémio Nobel. Dos últimos anos talvez tenha sido o mais significativo, porque é um homem que escreve bem e que tem tomadas de posição importantes no mundo de hoje em dia, ou seja, tem uma voz, defende as suas opiniões, tem tomado posições corajosas. E acho que isso é importante. Importa premiar um autor que não tenha 80 ou 90 anos ou que esteja a caminho da reforma. Dizem que Murakami é o eterno candidato. Há muito tempo que o Oriente não recebe o Nobel. Não estou a ver mais nenhum oriental a quem o prémio possa ser dado, francamente. Se essa for a lógica! A lógica não devia ser essa – devia ser: este homem tem uma obra, e é importante, e vamos premiá-lo. Não devia ser tão matemático assim. Agora que ele tem construído uma obra muito interessante, e tem um discurso interessante igualmente sobre uma série de questões… é um homem que talvez seja um bocadinho da retaguarda, talvez seja um homem da cultura cauteloso, talvez não apareça tanto, talvez não faça defesa das posições políticas. Talvez não percorra as “capelinhas certas”. Estes dois prémios que ele recebeu em Espanha, por exemplo, dizem bem a importância que ele tem a nível de certas culturas. Quer dizer, estamos a falar de um escritor frequentemente entrevistado e citado nas revistas e nos suplementos literários espanhóis. Portanto, ele é reconhecido em certos meios. Aqui em Portugal é que é um bocado esquecido, como digo… no princípio não era tanto assim, eu tenho saudades que pessoas como, por exemplo… o João Céu e Silva, do DN, escreve sempre muito sobre ele. Mas lembro-me que no início a Bárbara Reis e o Rui Tavares escreveram, e com propriedade, artigos longos sobre ele e sobre a sua obra. O José Mário Silva também chegou a escrever sobre ele. E agora tenho pena que isso não aconteça nas páginas dos jornais em que se escreve sobre livros. Artigos em que se possa falar um bocadinho da obra dele, porque o que sai, sai em colunas de texto muito pequeninas, que não dá para aprofundar nada. Eu lembro-me perfeitamente de ter lido textos bons onde se ia ao fundo da obra dele. Porque é triste ver sempre um autor quando sai um livro dele – um autor da ordem do Murakami – ver a obra dele reduzida a quatro parágrafos… onde dois parágrafos são a falar da obra anterior! “Fez estes livros assim, assim, assim… e neste livro…”, e depois vem um resumo da obra. Quer dizer, o que eu quero é que me digam o que é que está ali, quero ter uma análise interessante sobre aquela obra. E é isso que eu acho que falta à crítica portuguesa, a capacidade de pegar num livro e de o interpretar – à luz do pensamento de quem escreve! Duas estrelas, uma estrela, não presta, não é bom, não gosto… mas importa analisá-lo! É um autor um bocado esquecido em Portugal, e não entendo isso, francamente.

MPT – Acha que as vendas em Portugal não correspondem ao que se observa noutros países, proporcionalmente?

MJL – Não, correspondem! Um autor muito vendido em Portugal, sim! Dos autores mais vendidos da Casa das Letras. E é tanto mais espantoso quanto não é muito falado na imprensa!

MPT – Então, especificamente no caso português, o que é que as pessoas procuram em Murakami? O que as leva a comprar os livros dele?

MJL – É um autor que vende, quase uma coisa de boca a boca. Eu acho que Murakami - ainda há pouco falei um bocadinho nisso - consegue meter-se na pele das suas personagens, ele consegue descrever os estados de ansiedade do homem moderno. E fala de uma forma simples – sem ser simplista. Há livros complexos. Mas é engraçado, eu acho os livros complexos – a “Crónica do Pássaro de Corda” eu acho um livro completo – mas eu acho que mesmo os livros mais difíceis dele conseguem ser lidos por uma pessoa que não seja muito culta. Acho que uma pessoa que não entenda muito do que ele está a escrever ou a dizer consegue ler o livro na mesma. Consegue chegar ao fim. Quanto muito pode não perceber que ele está a falar de Freud ou de Jung, ou do que quer que seja, mas passa à frente! Porque a forma como ele passa a mensagem é importante. É a tal coisa, porque ele escreve com humor, muito embora o humor esteja disseminado! Ele tem atenção a isso, e fá-lo num bom ritmo. Aí está: este livro do Jay Rubin chama-se “Haruki Murakami and the Music of Words”. Ele tem atenção à importância das palavras, em japonês, mas os tradutores também têm atenção a isso. Eu também tenho um certo cuidado quando traduzo… eu acho que as pessoas se sentem compreendidas ao ler os romances dele. Sentem-se representadas ali. E depois a escrita… flui. Tem o tal ritmo… ele diz que “A ficção é uma coisa viva”. “A living thing”, eu traduzo o Jay Rubin. É verdade. Porque ele escreve para – ele diz muitas vezes isso – escreve para se conhecer a si próprio. Mas nesse processo de auto-conhecimento ele vai permitindo que os leitores se vão conhecendo a si próprios também. Eu acho que nos diálogos muito vivos. A forma muito engraçado, às vezes. Sempre sem perder o humor!

MPT – Há intenção de publicar esse livro do Jay Rubin – “Haruki Murakami and the Music of Words” - em Portugal?

MJL – Sim, a Casa das Letras gostava de traduzir este livro. Já andamos com este projecto há muito tempo. Como não será um projecto para muitos exemplares, temos estado a adiar. Gostávamos inclusivamente de o actualizar. De conversar com o Jay Rubin sobre o projecto, já se falou nisso.

MPT - De todos os livros que já traduziu, qual é que considera ser o seu preferido? E porquê?

MJL – Eu agora estou esperançada que o “1Q84” seja o meu livro preferido, não é? Murakami costuma dizer que Dostoiévski – que é um dos preferidos… não diz que é o preferido, mas ele às vezes descai-se e diz que é o autor preferido dele - que os melhores livros do Dostóievski vieram depois dos sessenta anos. E ele quando diz isto, é um paralelismo pouco subtil que se estabelece. Ele deposita grande fé neste livro. Só agora comecei a ler, não posso dizer “Ah, este é um começo prometedor”. Tem música! Música sinfónica moderna, logo… “Em Busca do Carneiro Selvagem” talvez seja o meu preferido. “Kafka à Beira Mar” é o livro que me parece mais surpreendente… e percebo porque é que as pessoas gostam mais dele, ou seja, não é difícil perceber porquê! E tenho que confessar que os contos, concretamente este conjunto de narrativas curtas do “O Elefante Evapora-se” é muito conseguido. Encontro aqui histórias que gosto, portanto tive muito gosto em traduzir este ‘O Elefante Evapora-se’. Há aqui histórias… eu volto sempre a “Sono”, porque acho que é, aí está, o conhecimento do mundo feminino. Sem sexo, mas… (risos) é uma história completamente delirante. “O Segundo Ataque à Padaria”, também, é uma história espantosa. Acho que podíamos ter estado aqui duas horas a falar disso, porque há ali coisas interessantíssimas…. Claro que o “Sputnik, Meu Amor” é sempre um amor primeiro! Eu olho com muita ternura para este livro. Há imensa gente que gosta muito desse livro, para quem ele é o livro eleito. Mas… são todos diferentes. Falaram no “Em Busca do Carneiro Selvagem”. É um livro especial. Gosto mais desse que do “Dança, Dança, Dança”, apesar de “Dança, Dança, Dança” ser importante para Murakami. Mas “Em Busca do Carneiro Selvagem” permitiu-o afirmar-se como escritor. Foi um livro que também me marcou…

MPT – Quais são as perspectivas de uma visita de Murakami a Portugal?

MJL – Nós temos tentado, na Casa das Letras. Eu mando-lhe umas coisas para o Japão, umas encomendas. Uns sabonetes para a Yoko, a mulher do Murakami gosta daqueles sabonetes portugueses que nós temos… a ele vou-lhe mandar umas camisolas da selecção. (risos) Aquelas que saíram com o jornal “i” a imitar as antigas. Tenho uma para lhe mandar. Ele tem uma assistente muito simpática – a Yuki. Vou-lhe mandar também as coisas, e vou escrever-lhe. Tenho manuscrito um texto a tentar, se ele vier a Espanha - mas ele não gosta de ir aos países segunda vez - a tentar que da próxima vez, em vez de vir a Espanha, uma vez que já conhece… já comeu polvo, que venha comer o nosso polvo à lagareiro! (risos). Gostava muito de o conhecer. Gostava imenso de o conhecer. E de falar com ele. Se calhar era mais fácil eu ir ao Japão, ou então ao Havai, à ilha de Hauai, onde ele tem aquela casa…

MPT – Gosta muito de “LOST” [a série de televisão “Perdidos”].

MJL – (risos) Se calhar agora está a ver o ‘The Event’, com gosto, não é? (risos)

MPT – E por último, uma pergunta que é assim um bocadinho subjectiva, mas… o que é que a Maria João acha que os leitores ainda podem esperar de Murakami, a médio prazo? Que obras é que ele ainda nos vai poder trazer? Depois de tudo o que já escreveu, o que é que acha que se segue?

MJL – Uma coisa é certa: eu acho que ele vai continuar a surpreender-nos. Acho que este autor não vai parar, ou seja, mesmo que ele considere que esta obra seja a obra importante que ele estava à espera de conseguir escrever, mesmo que ele tenha dito isso em tom de brincadeira – ou não –, depois desta eu espero pela próxima. Tenho a certeza absoluta de que este homem tem imaginação, tem capacidade de trabalho, tem coisas para dizer para além destas 1200 páginas, que estão contidas neste romance. Pela forma física como ele está, não é?, não correndo a maratona mas correndo a meia-maratona – continuando a apostar no triatlo – e continuando a fazer aquela vida mais ou menos espartana –, era por isso que eu dizia que ele era disciplinado ao contrário de mim… Fazemos os nossos horários de trabalho semelhantes, temos muitas coisas parecidas, mas aí ele é disciplinado: come, bebe, – tirando a sua cervejita –, é disciplinado nas coisas. Portanto, eu acredito que Murakami continue a produzir a um ritmo regular. Porque ele não é – e nisso também contraria aquela imagem de escritor fácil, que escreve o romance que está aí à mão de semear no aeroporto, fácil para ser levado para ler no avião – ele produz quando tem de produzir. Ele senta-se à secretária e escreve… como um autor que escreve para se conhecer, é um trabalho que está sempre a ser feito. É um trabalho que é eterno. Não vai parar. Eu estou em crer que ele vai continuar a surpreender-nos. E que depois desta obra de fôlego – ou não –, outros trabalhos virão. Quer dizer… tenho fé neste escritor (risos), parafraseando um título que eu também traduzi, da Joyce Carol Oates, “A Fé de Um Escritor”. Tenho muita fé neste escritor. Não é apenas a imaginação, é de facto a capacidade de trabalho, e a vontade de continuar a marcar presença, a fazê-lo no seu ritmo. Portanto… eu acho que esse até é um bom argumento para a Academia sueca, porque ele, não andando nas bocas do mundo, faz o seu trabalho de uma forma inteligente. Dando poucas entrevistas mas quando tem de dizer as coisas também as diz. É um escritor surpreendente. Acho que ainda vamos ter obras importantes dele depois desta. Não acredito que “1Q84” seja a última.

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Ainda agora acabou de ler e já tem saudades das opiniões de Maria João Lourenço acerca do autor que traduz em Portugal? Gostava que a sua voz se continuasse a ouvir frequentemente aqui pelo MURAKAMI PT? Fica a sugestão de regressar amanhã... pode ser que tenha uma surpresa...

4 comentários:

D disse...

É mesmo uma pena que a entrevista tenha chegado ao fim. Venho cá espreitar a novidade amanhã!

PS O que é o "projecto Rubin"?

Tiago Mendes disse...

O "projecto Rubin" foi uma gralha, que já corrigi. "De falar com o Jay Rubin sobre o projecto", e não "De falar com o Jay sobre o projecto Rubin". Obrigado pela chamada de atenção, e pela leitura da entrevista :)

D disse...

Obrigada!

Pereira disse...

Boa entrevista pessoal, muito interessante e esclarecedora!