terça-feira, 25 de outubro de 2011

Entrevista ao The Guardian [Parte 2/2]



Segunda metade da entrevista publicada no THE GUARDIAN, que podem ler neste link. A tradução desta segunda metade do artigo foi redigida por André Pereira, um seguidor do blog que exerce a actividade de tradutor, e que se disponibilizou a traduzir esta segunda parte.


A sua esposa, Yoko Takahashi, é a sua primeira leitora. O romance que nasceu durante um jogo de basebol chama-se Hear The Wind Sing (sem edição portuguesa) e foi galardoado com um novo prémio para escritores no Japão. Durante uns tempos, Murakami continuou a gerir o seu bar enquanto escrevia e isso era essencial para o seu progresso, dizia: "Tinha o meu clube de Jazz e tinha dinheiro suficiente, portanto não tinha de escrever para me sustentar e isso é muito importante." Quando o livro Norwegian Wood vendeu mais de três milhões de cópias no Japão, Murakami sentiu que já não havia necessidade de continuar no bar, se bem que por vezes imagine uma vida paralela onde se vê ainda naquele contexto. Acredita que não seria menos feliz.

"Se acredito em vidas alternativas? Hum... Sim. Mesmo assim, acho muito estranho. Por vezes interrogo-me por que razão sou escritor. Não existe uma razão certa para que me tenha tornado um. Algo aconteceu e, pronto, tornei-me escritor. E agora sou um bem-sucedido. Quando viajo para os EUA ou para a Europa, as pessoas conhecem-me e é muito estranho. Há alguns anos fui a Barcelona e dei uma sessão de autógrafos. Sabe, vieram 1000 pessoas. As raparigas deram-me beijos. Fiquei surpreso. O que me aconteceu?"

Ele escreve intuitivamente sem quaisquer planos. A inspiração para o seu último livro veio quando estava no meio do trânsito em Tóquio. O que teria acontecido caso tivesse evitado o engarrafamento e seguido por um desvio? Iria a sua vida mudar? "É o ponto inicial. Eu tenho um pressentimento que irá ser um bom livro. Iria ser bastante ambicioso. Era tudo o que sabia. Escrevi o romance Kafka à Beira-Mar, talvez há cinco ou seis anos, e esperei pela chegada do novo livro; até que chegou. Chegou. Soube que iria ser um enorme projecto. Era um pressentimento."

Um livro como o 1Q84 pode, em simultâneo, assumir características elípticas graças ao brilhantismo de Murakami, mas também deixar o leitor algo insatisfeito. A artificialidade presente no livro pode ser desculpada pelo autor como se fosse um comentário à própria artificialidade e, por vezes, o tom vago pode ser algo negativo. "Desde aquela vez que viu duas luas no céu e uma crisálida a materializar-se na cama do seu pai no sanatório, nada surpreendia Tengo por aí além."

Tal como acontecia nos seus livros mais antigos, algumas das cenas mais ternas são superficiais ao enredo principal. Em Norwegian Wood, o livro que Murakami escreveu da forma mais convencional possível a fim de ser um sucesso comercial, focava-se no pai moribundo da personagem principal e da sua namorada. Já em 1Q84, são as cenas entre Tengo, o parceiro romântico de Aomame, e o seu pai moribundo que temos mais dificuldades em apreciar. A maioria das personagens de Murakami tiveram infâncias infelizes e não é uma coincidência, admite. Não aconteceu nada de drástico durante a sua infância. Ainda assim, diz, "senti-me um pouco maltratado. Talvez se devesse ao facto de os meus pais esperarem que o filho fosse de uma maneira, mas acabando por ser de outra." Ri-se. "Esperavam que tivesse boas notas na escola, mas não tinha. Não gostava de estudar durante muito tempo. Apenas queria fazer o que me apetecia. Sou muito consistente. Esperavam que fosse para uma boa escola e arranjasse um emprego na Mitsubishi ou algo do género, mas também não o fiz. Queria ser independente. Então abri um clube de jazz e casei enquanto ainda andava na universidade. Ficaram um pouco desapontados com isso."

E de que forma é que o demonstraram?

"Apenas estavam desiludidos comigo. É duro para uma criança lidar com essa desilusão. Eles são boas pessoas, mas mesmo assim fiquei magoado. Ainda me recordo dessa sensação. Queria ser um bom filho para os meus pais, mas não o consegui. Já eu não tenho filhos. Por vezes interrogo-me sobre o que aconteceria se tivesse tido filhos, mas não o consigo imaginar. Não fui muito feliz enquanto criança, portanto não tenho a certeza se seria feliz como pai. Não faço a mínima ideia."

Então, como é que arranjou a confiança para fazer o que queria? "Confiança enquanto adolescente? Porque sabia do que gostava. Gostava de ler, ouvir música e de gatos, estas três coisas. Mesmo sendo apenas uma criança, era feliz porque sabia do que gostava e essas três coisas mantiveram-se constantes desde a minha infância. Ainda hoje sei do que gosto. E isso é confiança. Se não sabes do que gostas, estás perdido."

A opinião de Murakami no Japão é requisitada para quase todos os assuntos uma vez que é um dos intelectuais mais reconhecidos do seu país. Por ser tão tímido e modesto, não aprecia aparições públicas, mas dirige-se a todas as pessoas através dos seus livros.

 Logo após o atentado com gás Sarin em 1995 numa estação de metro em Tóquio, escreveu Underground - a Mentalidade de Tóquio e a Mentalidade Japonesa, um conjunto de ensaios jornalísticos sobre o evento. Murakami sente-se na obrigação de representar o seu país como escritor japonês e aceita receber publicidade no estrangeiro, enquanto a recusa no seu próprio país. Apesar de ter traduzido vários romances ocidentais para a língua japonesa, incluindo as obras do seu autor favorito, Raymond Chandler, admite que traduzir a partir da própria língua para outro idioma já é mais difícil. Nunca traduziria os seus próprios livros, no entanto discute algumas dúvidas relacionadas com determinadas palavras com os seus tradutores.

Murakami encontrava-se em Honolulu no início deste ano quando o terramoto e tsunami se abateram sobre o Japão. Mudou o país, diz. "As pessoas perderam a sua confiança. Esforçámos-mos imenso após o final da guerra. Durante 60 anos, quanto mais ricos éramos, mais felizes nos tornávamos. Mas no final, não éramos felizes, por mais que trabalhássemos. E surgiu o terramoto, muitas pessoas tiveram de ser evacuadas, tiveram de abandonar as suas casas e cidades. Uma tragédia. E estávamos orgulhosos da nossa tecnologia, mas a nossa central nuclear acabou se tornar no nosso pesadelo. O que fez as pessoas começaram a pensar que tínhamos de mudar drasticamente de estilo de vida. Creio que foi um grande ponto de viragem para o Japão."

Compara o acontecimento com o atentado de 11 de Setembro, dizendo que também alterou a História do mundo. De um ponto de vista de um escritor, é um "evento milagroso", demasiado improvável para ser real. "Quando vejo aqueles vídeos dos dois aviões a despenharem-se contra as torres, parece-me um milagre. Não é politicamente correcto dizer que é bonito, mas tenho de admitir que existe uma certa beleza no acontecimento. É horrível, é uma tragédia, mas mesmo assim existe beleza. Parece demasiado perfeito. Nem posso acreditar que, de facto, aconteceu. Dou por mim a questionar-me que se os aviões não se tivessem despenhado contra as torres, o mundo seria tão diferente do que é agora."

As mudanças que estão afectar os japoneses devem-se em parte, diz Murakami, ao facto de terem perdido muito e de terem de questionar o que realmente interessa. As suas prioridades são simples, continua. Por exemplo, não faz ideia de quanto dinheiro tem. "Sabe, se formos rico, a melhor coisa é o facto de não termos de pensar no dinheiro. A melhor coisa que podemos comprar com ele é a liberdade e tempo. Não sei quanto ganho por ano. Não faço ideia. Também não sei quanto pago de impostos e nem quero pensar nisso."

Pausa durante algum momento.

“É lamentável, o meu contabilista e a minha mulher é que tratam disso. Não me deixam saber de nada. Apenas trabalho."

Ele deve mesmo confiar na sua mulher! "Estamos casados há 40 anos ou isso. Ela ainda é minha amiga. Conversamos, conversamos sempre. Ajuda-me imenso. Aconselha-me sobre os meus livros. Respeito a sua opinião. Por vezes discutimos.”

A sua opinião, por vezes, é dura. "Sim, por vezes é."

Talvez necessite disso.

"Talvez. Se o meu editor fizesse o mesmo, iria-me chatear." Murakami encolhe os ombros. "Posso deixar o meu editor, mas não posso deixar a minha mulher."

O seu pai faleceu há dois anos, mas a sua mãe ainda está viva. Murakami espera que os seus pais tenham ficado felizes com o seu sucesso enquanto escritor, mas no entanto permanece a dúvida. Murakami tem as suas distracções: É membro de um clube de corrida no Havai e é, de todos, o mais velho, afirma. Corre tanto quanto escreve, como quem diz, todos os dias. A consistência é tudo. "Gosto de ler livros. Gosto de ouvir música e de comprar álbuns. E gosto de gatos. De momento não tenho nenhum gato, mas se estiver a passear e vir um gato, então fico feliz."


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