terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

[Crónicas da Tradutora] - A angústia da tradutora diante dos caracteres chineses



Peter Handke escreveu sobre a angústia do guarda-redes antes do «penalty»; hoje em dia, um bom comentador logo corrigiria para «pontapé da marca de grande penalidade», mas lá se perdia a graça toda. Os escritores temem a página em branco. Uma tradutora como eu conhece sentimentos de angústia redobrados diante dos caracteres chineses, que ainda não domina (talvez quando a editora se reformar e lhe der tréguas, quem sabe?, antes da bengala e dos outros males próprios da idade), e das mil e seiscentas páginas repletas de palavras que a esperam, assim que lhe chegue às mãos a tradução final em língua inglesa.

Tal como Murakami não se cansa de afirmar que «ao escrever, desço ao mais fundo da minha mente», também eu faço os possíveis por aprofundar o conhecimento da(s) língua(s) e da linguagem, para melhor traduzir o que vai na cabeça e na alma do japonês. Confio no saber e na perícia de Jay Rubin e de Philip Gabriel, encarregados de traduzir para a língua inglesa o novo romance que anda nas bocas do mundo: 1Q84. Tal como Rubin, também eu me habituei a escrever para o Japão, deixando que a fiel Yuki transmita a Haruki Murakami as dúvidas que me assaltam, bem como uma ou outra questão porventura mais frívola (a assistente do escritor tem amigos na Europa e, por vezes, trocamos duas ou três ideias sobre assuntos que nada têm que ver com a literatura).

Neste romance, a tal obra de peso em que Murakami deposita grandes esperanças, Jay Rubin, encarregado da tradução dos Livros 1 e 2 para inglês (Gabriel traduziu o terceiro livro), percebeu a páginas tantas que muitas passagens podiam ser traduzidas ou na primeira ou na terceira pessoa, e pediu, como sempre, indicações ao autor. As respostas de Murakami são muitas vezes desconcertantes. O japonês confia nos seus tradutores; pede-lhes, acima de tudo, que façam o melhor que sabem, a fim de os seus livros funcionarem bem na língua em que estão a ser traduzidos, que é como quem diz, junto dos falantes de uma determinada língua.

Hoje é dia 1 de Fevereiro de 2011. Na vizinha Espanha deve haver muitos leitores, de todas as idades, imagino eu, sem dormir. Começa a circular a edição espanhola de 1Q84, traduzida por Gabriel Álvarez Martínez para a Tusquets, um grosso volume em tons de preto e verde, com o título sonante bem visível. No Japão, os 500 mil exemplares desapareceram das estantes e dos escaparates da noite para o dia, obrigando a uma rápida reedição, e ao fim de uma semana já tinham sido vendidos mais de dois milhões de exemplares. Na Alemanha, no Outono passado, a tiragem inicial de 40 mil cópias não foi suficiente para satisfazer a procura nem para alimentar os devoradores dos livros escritos por Murakami. Em Inglaterra e nos Estados Unidos, o livro sairá só em Outubro, mas, em compensação, os que lêem na língua de Shakespeare, Roth, DeLillo e McEwan (que ganhou este ano o Prémio Jerusalém, sucedendo ao nosso japonês preferido) vão ser os primeiros a conhecer o fim da ambiciosa história que demorou três anos a ser escrita. E nós, por cá, ainda é cedo para saber, mas só depois dessa data, por certo. Mantenham-se atentos a este blogue…

Confesso que já tenho o meu livro em castelhano encomendado, por mensageiro escolhido a dedo. Logo na primeira página, surge em toda a sua pujança a personagem curiosíssima de Aomame, a tal assassina que abandona o táxi, em plena auto-estrada, no meio de um engarrafamento monumental, e se mete pelas profundezas dos subterrâneos para chegar a tempo a uma reunião de vida ou de morte. O romance tem um começo fantástico, ao som da Sinfonietta de Janáček, dentro daquele táxi perfeitamente surreal, conduzido por um motorista que não lembra ao diabo. Contou Murakami aos dois jornalistas que o entrevistaram recentemente que a história começou a ganhar forma no dia em que ele viajava pelas ruas apinhadas de Tóquio e se viu preso no meio do tráfico intenso. «Olhei pela janela e pensei como me sentiria se abandonasse o carro ali mesmo e descesse ao subsolo da cidade.» Uma ideia daquelas que os escritores têm e apontam religiosamente nos seus caderninhos.

Ando a ler este romance na versão alemã. Em fundo, «Cravo Bem Temperado», música para os meus ouvidos. Os prelúdios e fugas de Bach em todos os tons ajudam-me na descoberta das várias línguas. Vai ser bom reencontrar a proximidade da língua castelhana, sempre com os caracteres chineses por perto….


Maria João Lourenço

Maria João Lourenço, tradutora das obras de Haruki Murakami para o português, iniciou uma parceria com o blog MURAKAMI PT, e assina a cada mês uma crónica por si escrita, que aborda um dos múltiplos temas que o autor japonês abrange.

2 comentários:

André Pereira disse...

Eu, como tradutor sei bem o que é penar e suar quase sangue face a uma nova tradução.
Nunca traduzi literatura, mas sei que quando as expectativas são imensas, o nosso trabalho terá de ser exímio.
1Q84, está quase, quase aí, imagino o reboliço.

Cumprimentos,
André Pereira

Anónimo disse...

Li o meu primeiro livro de Murakami, numa tradução francesa.Simplesmente adorei o estilo. Estou neste momento a ler o primeiro volume de 1Q84 em português e não reconheço o estilo do autor, parece-me uma tradução do francês e não do japonês,uma vez que reconheço expressões francesas traduzidas grosseiramente para o português. Exemplo:" À força de", do francês " à force de". Os próximos volumes lê-los-ei em francês...