«O Segundo Assalto à Padaria»
Se há histórias de Murakami que despertam a minha imaginação, em todos os sentidos, esta é uma dela. Sono é outra que tal, e sobre ela terei de me debruçar, numa crónica futura. A começar pelo título e a acabar no final, perfeitamente conseguido, segundo as regras mais ou menos elaboradas que ditam a arte de bem escrever contos. Agora que se estreou a curta-metragem inspirada no conto «O Segundo Assalto à Padaria», assinada pelo mexicano Carlos Cuarón e interpretada por Kirsten Dunst e Brian Geraghty, reforço o meu sentimento de apego a uma história nascida de uma mente tão singular como a de Murakami e, ao mesmo tempo, tão universal. Vejo as imagens que circulam na net e penso: Quentin Tarantino cruza-se com Woody Allen? E não, não estou a falar dos símbolos que atravessam a escrita de Haruki Murakami; neste caso concreto, não me refiro à Remington automática empunhada pela personagem feminina em pleno ataque à casa de hambúrgueres nem ao McDonald's, alvo dos assaltantes... esfaimados.
Espero ter conseguido despertar a vossa atenção. Na verdade, este conto é bem mais profundo do que a primeira leitura poderá sugerir. «Por qualquer motivo, acordámos precisamente ao mesmo tempo», conta ele, o jovem «boku» (narrador). Estão os dois deitados, ainda não partilham todos os segredos nem todas as rotinas. Acordam e experimentam uma fome terrível: são dores que se fazem sentir «com a violência igual à do tornado em O Feiticeiro de Oz». Terá o facto de estarmos diante de dois recém-casados alguma coisa que ver com o assunto? Com alguma necessidade interior mais profunda? Sabemos que o frigorífico está quase vazio, não há comida nos armários da cozinha. Ele sugere que vão à procura de um restaurante próximo; ela recusa-se a sair de casa depois da meia-noite.
Enquanto ele mergulha na imagem de um vulcão nas profundezas do mar que a fome extrema fez crescer dentro dele, aos olhos dela, a fome surreal só pode ser o resultado de uma maldição. Daí que seja a mulher a pegar em armas e a liderar o assalto à padaria, que nos tempos modernos só poderia ser um McDonald's, estava-se mesmo a imaginar. «Um autor original inventa sempre um mundo original, e se uma personagem ou uma acção cabe no padrão desse mundo, então sentimos o agradável choque da verdade artística, por mais improvável que a pessoa ou a coisa possam parecer se transferidas para aquilo a que os críticos literários, pobres escrevinhadores, chamam "vida real"», já lá diz Vladimir Nabokov nas suas Aulas de Literatura (Relógio D'Água, tradução de Salvato Telles de Menezes).
O episódio que dá origem ao tal segundo ataque à padaria vem de trás. Quatro anos antes de escrever este conto, datado de 1989, Murakami publicou uma história chamada «O Assalto à Padaria» (Pan'ya shūgeki), É precisamente esse episódio, contado pelo marido a meio de uma noite de fome opressiva, que desencadeia a imaginação fértil da mulher, neste conto que faz as minhas delícias e cumpre aquela regra de ouro: rapaz encontra rapariga, os dois apaixonam-se, depois casam-se e começam as surpresas. O que nunca deixa de me espantar nesta história, e o que faz dela uma pequena e delicada pérola literária, é a capacidade demonstrada pelo escritor japonês de traçar o retrato interior das suas personagens em meia dúzia de páginas, conseguindo ao mesmo tempo captar o cenário e transportar o leitor - todos os leitores - nessa viagem ao fundo da alma. Aquele homem e aquela mulher, sejam eles os passageiros da noite que Murakami idealizou em Tóquio, ou tenham eles os rostos ocidentais que vivem na fronteira do Texas, na curta de Quadrón, (http://www.slashfilm.com/kirsten-dunst-carlos-cuarns-the-bakery-attack/), podem ser todos os jovens recém-casados, à medida que se descobrem um ao outro, enquanto partilham as últimas migalhas de um pacote de bolachas amolecidas.
«Porventura a mais perfeita destilação poética da visão de Murakami», escreveu Jay Rubin no seu livro Haruki Murakami and the Music of Words. Este conto mostra Murakami no pleno domínio da arte do conto, um perfeito herdeiro do Tchékov que ele tanto ama enquanto leitor. Que nos importa se Murakami continua a negar a importância dos símbolos na sua obra? No fundo, todos temos um vulcão dentro de nós.
Maria João Lourenço
Maria João Lourenço, tradutora das obras de Haruki Murakami para o português, iniciou uma parceria com o blog MURAKAMI PT, e assina a cada mês uma crónica por si escrita, que aborda um dos múltiplos temas que o autor japonês abrange.
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