sexta-feira, 2 de julho de 2010

[Entrevista] - A Minha Vida é Monótona


Vai haver muitos dias em que não teremos notícias do dia para dar - com Murakami é mesmo assim, e é também um dos motivos que tivémos para criar o blog: a falta de notícias, e a grande dispersão das mesmas. Por isso, hoje, deixamos com vocês a entrevista publicada no i online a 30 de Novembro de 2009, que a tradutora Maria João Lourenço fez ao autor. Publicamo-la aqui para os leitores a quem a existência da entrevista tenha passado ao lado. É, na íntegra, muito interessante.


30 de Novembro de 2009 - Haruki Murakami gosta de escrever e gosta de correr - o seu novo livro, "Auto-retrato do Escritor Enquanto Corredor de Fundo", publicado este mês em Portugal, é prova disso mesmo. Apesar de não cultivar o isolamento de outros autores, também gosta de se fechar em casa a ler livros e a ver episódios da série "Perdidos" (gravados precisamente na ilha de Kauai onde escolheu viver partes do ano). O que não gosta é de responder a perguntas: "O autor deve ser a última pessoa a falar sobre a sua obra", justifica. Arrancar-lhe uma entrevista é, portanto, uma raridade: "Haruki está concentrado a escrever o novo romance e não tem aceitado dar entrevistas. Mas como este é um pedido especial, ele quis colaborar", explicou por email Yuki Katsura, a assistente, avisando ainda que Murakami não teria tempo para respostas longas. Em relação ao novo romance, "1Q84", que acabou de ser publicado no Japão, Murakami disse à sua tradutora (aqui na pele de entrevistadora) que quer vê-lo em português: "E espero que seja aceite calorosamente (com fervor, de preferência). Espero ainda visitar o vosso país numa próxima ocasião."


João Céu e Silva escreveu no "Diário de Notícias" acerca deste novo livro: "Quando se chega ao fim, fica a curiosa sensação de que entrámos num mundo inesperado do japonês e que um dia destes ele brindará os seus leitores com a verdadeira autobiografia completa." Os leitores podem contar com isso?

Não creio que algum dia vá escrever a minha autobiografia, uma vez que a minha vida (até à data) é bastante monótona. Levanto-me de manhã cedo e trabalho cinco ou seis horas, depois corro (ou nado) durante uma hora, e vou para a cama bastante cedo. Estou casado com a mesma mulher há 37 anos. Faço colecção de velhos LP de jazz. Não vejo que razão possa ter para descrever esta minha vida, sem nada de extraordinário, e correr o risco de provocar bocejos nas outras pessoas. Mas um dia destes terei qualquer coisa a dizer acerca da escrita propriamente dita.


Considerando a forma - um livro de memórias -, registaram-se mudanças significativas no processo criativo, ou foi apenas trabalhar no duro e suar como de costume?

A pergunta refere-se à forma do livro? Ou ao exercício propriamente dito? O que quis dizer neste livro foi o seguinte: para se produzir uma obra consistente, poderosa, tem de se ser fisicamente forte e estar em boa forma física. É essa a minha teoria. Quando se é muito novo, ou quando se é um génio, não é preciso fazer exercício. Um escritor limita-se a escrever. Até aí, tudo bem. Não perde o seu tempo com mais nada. Mas quando já não se é tão jovem nem tão genial quanto isso, o corpo torna-se um companheiro importante. Ajuda, tanto física como mentalmente, sobretudo a manter a cabeça desanuviada e a mente activa.
Como define a sua relação com os críticos, que por vezes tendem a associar à sua obra rótulos como pós-moderno, surrealista, ecléctico, pop?
Sou um romancista. Escrever livros é a minha profissão. E acredito que o autor deve ser a última pessoa a falar sobre a sua obra. Por isso, deixo que sejam os outros a tecer considerações acerca do meu trabalho. Algumas pessoas dizem coisas razoáveis, outras não; o problema é delas e não meu. Pela parte que me toca, continuo a escrever, e isso é o mais importante. Espero escrever o que outros não são capazes de escrever, ou não se atrevem a escrever. Será provavelmente a isto que chamam "originalidade". E, por vezes, a originalidade tem o condão de irritar certas pessoas. Não é minha intenção provocar essa irritação, escusado será dizer, mas, tal como já disse antes, o problema é definitivamente deles, não meu.


O terceiro volume de "1Q84" será publicado no Japão em Maio de 2010. Já disse que era "o maior e o mais ambicioso". Assassínio, história, cultos religiosos, laços familiares, amor. Apesar do segredo que envolve o romance, pode revelar-nos mais?

Gostava de lhe chamar "um romance completo" ou "um romance total", uma vez que contém quase tudo dentro dele. Por outras palavras, foi concebido como um microcosmo. Não tem aquilo a que se chama um "tema". É apenas um romance, uma história e, se resultar bem junto dos leitores, significa que eles se irão ver perdidos na densa floresta engendrada pela própria história e por lá vão andar, por sua conta e risco. É isso que pretendo. Que vocês, leitores, andem por ali sozinhos e perdidos, mas que no fim acabem por ser salvos, de certa maneira. Mais ou menos...


"1Q84" é um calhamaço. Philip Roth, eterno candidato ao Nobel, em entrevista recente ao "Guardian", afirmou que cada vez parece existir menos capacidade de concentração para ler um romance devido aos computadores e à televisão. Num cenário destes, o que continua a inspirar Haruki Murakami a escrever romances?

Se o livro for suficientemente bom e poderoso, e suficientemente apelativo, as pessoas vão lê-lo e irão gostar do que lêem. Estou de acordo com Mr. Roth em muito do que ele diz, mas acredito no poder dos livros, no poder das histórias dos últimos três mil anos. É preciso ter uma certa confiança nessa matéria. Computadores? Existem há quê? Pouco mais de duas décadas, não é verdade? Se cinco por cento da população ler livros com regularidade, gostar verdadeiramente de ler, só isso já será fantástico. Nós (escritores) podemos continuar a viver porque sabemos que eles estão lá. Deixem lá os restantes noventa e cinco por cento das pessoas ver a televisão que quiserem ou entreterem-se com jogos de computador até à exaustão. Não importa. Cinco por cento de leitores é quanto basta.


Que música é que ouve quando não está a escrever, altura em que só tem por hábito prestar atenção ao som produzido pelo teclado?

Música clássica de manhã, jazz da parte da tarde e à noite. Enquanto conduzo, quase sempre rock. É uma grande ajuda. Devo muitas coisas à música. Refiro-me à boa música, claro. Mas quando estou realmente concentrado na escrita, não oiço nada.


Este ano visitou Espanha a fim de receber o Prémio San Clemente. Passou um dia na companhia de jovens entre os 16 e os 18 anos que parecem ávidos de o ouvir e ler. Tem consciência disso?

Fico verdadeiramente satisfeito por saber que os jovens na Europa (ou em qualquer outra parte do mundo) adoram ler os meus livros. Encaro isso como uma espécie de milagre. A verdade é que confesso a minha ignorância quanto às razões que os levam a ler-me com tanta avidez, uma vez que não sei quase nada acerca da juventude nos dias que correm, mas parto do princípio de que partilhamos histórias. Histórias são metáforas. E nós precisamos de boas metáforas para sobreviver neste mundo duro e cruel. As teorias não funcionam, os variados "ismos" (seja o comunismo ou o mercado livre, market-ism, e outros que tais) não surtem efeito na prática, as Nações Unidas não funcionam, os computadores estragam-se, os pais são estúpidos, os professores são idiotas, a escola não presta (tem dias), mas a metáfora cumpre a sua função. Tanto no que toca aos adultos como aos jovens.


Como tradutora, perguntam-me ainda hoje muitas vezes como traduzi o capítulo 16 de "Kafka à Beira-Mar", com todo aquele sangue à mistura. O Haruki disse em tempos: "Quando estou a escrever, não penso. Não sei se [as personagens] são boas ou más." Continua a pensar o mesmo?

Quando me encontro a escrever histórias, viajo até lugares sombrios, para não dizer até aos lugares mais obscuros. Em sítios desses, não é fácil, para não dizer que por vezes se torna impossível, dizer o que é bom e o que é mau. O que é certo e o que é errado. No entanto, quando nos apanhamos de volta à superfície, que é como quem diz, a este mundo, temos de decidir se queremos ter uma vida como deve ser. Como tal, somos obrigados a levar uma vida dupla - uma vida profunda e uma vida superficial. Pode chamar-se a isso uma existência dividida. E a experiência ameaça revelar-se bastante perigosa. A nossa personalidade pode ficar dividida para sempre. Quero com isto dizer que uma pessoa tem de ser suficientemente forte. Dito de outro modo, é preciso correr.


Sempre me impressionou o seu entendimento do mundo feminino. Freud diz que um homem só é capaz de amar na medida em que "possui uma vida emocional feminina". Como é que se analisa diante do espelho?

Costumava sentir-me pouco à vontade quando escrevia personagens femininas, comparado com o que sentia quando me punha a escrever personagens masculinas. Contudo, recentemente, dei por mim a gostar cada vez mais de escrever sobre mulheres. De certa maneira, é como se me sentisse capaz de me pôr na pele delas, por assim dizer. E isso é muito importante para mim enquanto escritor. O que o Dr. Freud diz tanto me faz.


Afecta-o de alguma maneira ver o seu nome referido ano sim, ano não, como potencial candidato ao Prémio Nobel da Literatura?

Os bons leitores são os meus verdadeiros prémios e as medalhas dignas desse nome. As outras coisas... não passam disso mesmo. Ou se percebe isto ou não se percebe. Não tem importância.

Gostaram da entrevista? Partilhem connosco as vossas opiniões. Eu, pessoalmente, não me passou nada o lado a frase que li na introdução: "Espero ainda visitar o vosso país numa próxima ocasião."!

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